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Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt

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que um conceito foi transformado numa metáfora — desde que “metáfora” seja

entendida em seu sentido original não alegórico de metapherein (transportar).

Pois uma metáfora estabelece uma conexão que é sensorialmente percebida em

sua imediaticidade e dispensa interpretações, ao passo que uma alegoria sempre

procede de uma noção abstrata e então inventa algo palpável, para representá-lo

praticamente à vontade. A alegoria deve ser explicada antes que adquira sentido,

deve-se encontrar uma solução para o enigma que ela apresenta, de modo que a

interpretação muitas vezes laboriosa das figuras alegóricas infelizmente sempre

lembra a solução de quebra-cabeças, mesmo quando não se exige maior engenho

do que na representação alegórica da morte por um esqueleto. Desde Homero, a

metáfora tem arcado com aquele elemento do poético que transporta a cognição;

o seu emprego estabelece as correspondances entre coisas fisicamente as mais

remotas entre si — como quando na Ilíada a investida violenta do medo e da dor

sobre os corações dos aqueus corresponde à rude investida combinada dos

ventos do norte e oeste sobre as águas escuras (Ilíada, ix, 1-8); ou quando a

aproximação do exército, seguindo para a batalha, linha após linha, corresponde

às longas vagas do oceano que, impelidas pelo vento, alteiam-se encrespadas em

alto-mar, correm linha a linha para a costa, e então explodem trovejantes na terra

(Ilíada, iv, 422-8). As metáforas são os meios pelos quais se realiza

poeticamente a unicidade do mundo. O que é tão difícil de entender em

Benjamin é que, sem ser poeta, ele pensava poeticamente e, por conseguinte,

estava fadado a considerar a metáfora como o maior dom da linguagem. A

“transferência” lingüística nos permite dar forma material ao invisível — “Uma

poderosa fortaleza é nosso Deus” — e assim torná-lo capaz de ser

experimentado. Não lhe era problema entender a teoria da superestrutura como a

doutrina final do pensamento metafórico — exatamente porque, sem muito

trabalho e evitando todas as “mediações”, ele relacionava diretamente a

superestrutura com a chamada infra-estrutura “material”, que para ele significava

a totalidade dos dados sensorialmente experimentados. Estava evidentemente

fascinado por aquilo mesmo que os outros rotulavam de pensamento “marxista

vulgar” ou “não dialético”.

Parece plausível que Benjamin, cuja existência espiritual se formara e

enformara por Goethe, um poeta e não um filósofo, e cujo interesse era

despertado quase que exclusivamente por poetas e romancistas, embora tivesse

estudado filosofia, deveria achar mais fácil se comunicar com poetas do que com

teóricos, fossem eles da variante dialética ou metafísica. E na verdade não há

dúvida de que sua amizade com Brecht — única pelo fato de que, aqui, o maior

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