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Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt

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material estavam tão intimamente ligados que parecia possível descobrir, em

todas as partes, as correspondances de Baudelaire, as quais, se fossem

adequadamente correlacionadas, se esclareceriam e se iluminariam umas às

outras de modo que, ao final, não mais precisariam de nenhum comentário

interpretativo ou explicativo. Ele estava interessado na correlação entre uma

cena de rua, uma especulação na Bolsa de Valores, um poema, um pensamento,

com a linha oculta que as une e permite ao historiador ou ao filólogo reconhecer

que devem ser todos situados no mesmo período. Quando Adorno criticou a

“apresentação aberta de atualidades” de Benjamin (Briefe, vol. ii, p. 793), pegou

o ponto exato; era precisamente o que Benjamin fazia e queria fazer. Fortemente

influenciado pelo surrealismo, era a “tentativa de capturar o retrato da história

nas representações mais insignificantes da realidade, por assim dizer em suas

raspas” (Briefe, vol. ii, p. 685). Benjamin tinha paixão pelas coisas pequenas, até

minúsculas; Scholem conta da sua ambição de colocar cem linhas escritas na

página comum de um caderno de notas, e da sua admiração por dois grãos de

trigo na seção judaica do Museu Cluny, “onde uma alma irmã inscrevera na

íntegra o Shema Israel. 3 Para ele, a dimensão de um objeto era inversamente

proporcional à sua significação. E essa paixão, longe de ser um capricho,

derivava diretamente da única concepção de mundo que teve uma influência

decisiva sobre ele, a convicção de Goethe sobre a existência fática de um

Urphänomen, um fenômeno arquetípico, uma coisa concreta a ser descoberta no

mundo das aparências, na qual coincidiriam “significado” (Bedeutung, a mais

goethiana das palavras, é recorrente nos textos de Benjamin) e aparência, palavra

e coisa, idéia e experiência. Quanto menor fosse o objeto, tanto mais provável

pareceria poder conter tudo sob a mais concentrada forma; daí seu deleite em

que dois grãos de trigo contivessem todo o Shema Israel, a essência mesma do

judaísmo, a mais minúscula essência aparecendo na mais minúscula entidade, de

onde, em ambos os casos, tudo o mais se origina, embora em significado não

possa ser comparado à sua origem. Em outras palavras, o que desde o início

fascinou Benjamin nunca foi uma idéia, foi sempre um fenômeno. “O que parece

paradoxal em tudo que é, com justiça, chamado de belo é o fato de que apareça”

(Schriften, vol. i, p. 349), e esse paradoxo — ou, mais simplesmente, a maravilha

da aparência — sempre esteve no centro de todas as suas preocupações.

A distância desses estudos em relação ao marxismo e ao materialismo dialético

é confirmada pela sua figura central, o flâneur. 4 É a ele, vagueando a esmo entre

as multidões nas grandes cidades, num estudado contraste com a atividade

apressada e intencional delas, que as coisas se revelam em seu sentido secreto:

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