Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt
homenzinho, ninguém presta atenção; nem a si nem ao homenzinho.Consternado, detém-se diante de um monte de escombros” (Schriften, vol. i, pp.650-2).Graças à publicação recente de suas cartas, a história da vida de Benjaminagora pode ser traçada num amplo esboço; e, na verdade, seria tentador contá-lacomo uma seqüência desses montes de escombros, visto que dificilmente hádúvidas de que ele próprio a viu dessa forma. Mas o ponto da questão é que eleconhecia muito bem a atuação recíproca, o lugar “onde gênio e fraquezacoincidem”, que tão magistralmente diagnosticara em Proust. Poisevidentemente ele também estava falando de si mesmo quando, em total acordo,citou o que Jacques Rivière dissera sobre Proust: “morreu da mesmainexperiência que lhe permitiu escrever suas obras. Morreu de ignorância [...]porque não sabia como acender um fósforo ou abrir uma janela” (“A imagem deProust”). Como Proust, ele era totalmente incapaz de mudar “as condições desua vida, mesmo quando estão prestes a esmagá-lo”. (Com uma precisãosemelhante à de um sonâmbulo, sua falta de jeito invariavelmente o guiava até ocentro mesmo de uma desventura, ou a qualquer lugar onde algo do gêneropudesse se ocultar. Assim, no inverno de 1939-40, o perigo dos bombardeios fêlodecidir deixar Paris por um lugar mais seguro. Bem, nenhuma bomba caiujamais em Paris, mas Meaux, para onde seguira Benjamin, era um centro deconcentração de tropas e provavelmente um dos pouquíssimos lugares da Françaseriamente ameaçados naqueles meses de embuste bélico.) Mas, como Proust,ele tinha toda razão em bendizer a maldição e repetir a estranha prece do final dopoema, com a qual conclui suas memórias de infância:Liebes Kindlein, ach, ich bitt,Bet fürs bucklicht Männlein mit.[Peço, ó amada criancinha,Reze também pelo corcundinha.]Respectivamente, a rede inextricável tecida de mérito, grandes dons, falta dejeito e desventura em que foi apanhada sua vida pode ser detectada mesmo noprimeiro puro golpe de sorte que abriu para Benjamin a carreira de escritor.Graças aos bons serviços de um amigo, pôde colocar “Afinidades eletivas deGoethe” em Neue Deutsche Beiträge de Hofmannsthal (1924-5). Esse estudo,uma obra-prima da prosa alemã e ainda de envergadura única no campo geral da
crítica literária alemã e no campo especializado da erudição goethiana, já foravárias vezes recusado, e a aprovação entusiástica de Hofmannsthal veio nummomento em que Benjamin quase desistia de “encontrar quem o aceitasse”(Briefe, vol. i, p. 300). Mas houve também uma desventura decisiva,aparentemente nunca entendida de todo, que, sob as circunstâncias dadas, estavanecessariamente ligada a essa sorte. A única segurança material a que poderialevar essa primeira aparição pública era a Habilitation, primeiro passo dacarreira universitária para a qual se preparava Benjamin. Isso certamente aindanão bastaria para a sua subsistência — o chamado Privatdozent não recebiasalário —, mas provavelmente induziria seu pai a sustentá-lo até obter docênciaplena, visto que essa era uma prática corrente naquela época. É difícil entenderagora como ele e seus amigos jamais puderam duvidar de que uma Habilitationsob a autoridade de um professor universitário comum não estivesse fadada a umfinal catastrófico. Certamente pode-se acreditar quando os cavalheirosenvolvidos declararam posteriormente não ter entendido uma única palavra doestudo Origem do drama barroco alemão, que Benjamin lhes submetera. Comoentenderiam um escritor cujo maior orgulho era o de que “escrever consistelargamente em citações — a mais louca técnica mosaica imaginável” — e quecolocava a maior ênfase sobre os seis motes que precediam o estudo: “Ninguém[...] conseguiria reunir outras mais raras e preciosas”? (Briefe, vol. i, p. 366). Eracomo se um autêntico mestre tivesse elaborado algum objeto único, apenas parapô-lo à venda no bazar de pechinchas mais próximo. Na verdade, nem foipreciso um anti-semitismo ou uma má vontade em relação a um forasteiro —Benjamin se formara na Suíça durante a guerra e não era discípulo de ninguém—, nem tampouco a habitual suspeita acadêmica em relação a tudo que não sejagarantidamente medíocre.Entretanto — e é aí onde entram a falta de jeito e a má sorte —, na Alemanhadaquela época, havia uma outra forma, e foi exatamente o seu ensaio sobreGoethe que arruinou a única oportunidade de Benjamin para uma carreirauniversitária. Como ocorre com freqüência nos textos de Benjamin, esse estudoera inspirado pela polêmica, e o ataque se referia ao livro de Friedrich Gundolfsobre Goethe. A crítica de Benjamin era definitiva, e no entanto Benjamin podeter esperado maior compreensão da parte de Gundolf e outros membros docírculo de Stefan George, grupo cujo mundo intelectual lhe fora inteiramentefamiliar na juventude, do que da parte do establishment; e provavelmente nãoprecisaria ser membro do círculo para obter sua autorização acadêmica sob acátedra de um daqueles homens que, na época, estavam justamente começando a
- Page 93 and 94: oferecida pelo amor, mútuo amor
- Page 95 and 96: aceitável, quanto desdenhosa em re
- Page 97 and 98: entanto, o ponto da questão é que
- Page 99 and 100: suficiente para ter um pouco mais d
- Page 101 and 102: fazer com que o sonho de uma outra
- Page 103 and 104: i. o poeta relutanteHermann Broch f
- Page 105 and 106: algumas novas histórias, incluindo
- Page 107 and 108: compreensão última de Broch, o de
- Page 109 and 110: Posteriormente foi-lhe posta, com i
- Page 111 and 112: ii. a teoria do valorEm seu estági
- Page 113 and 114: essa transformação das idéias em
- Page 115 and 116: salvadora que dissolve a consciênc
- Page 117 and 118: iii. a teoria do conhecimentoComo c
- Page 119 and 120: arte. 41 E no estudo sobre Hofmanns
- Page 121 and 122: olhos de um deus, que o abarcaria t
- Page 123 and 124: envolvido pela maquinaria do mundo
- Page 125 and 126: é apenas um outro nome para a “p
- Page 127 and 128: iv. o absoluto terrenoTudo o que Br
- Page 129 and 130: correspondem a dois tipos de ciênc
- Page 131 and 132: mostrar que ele brota objetivamente
- Page 133 and 134: que queria era responder à pergunt
- Page 135 and 136: sua fórmula matemática. “A rosa
- Page 137 and 138: 51 Ibid., p. 74.52 “Der Zerfall d
- Page 139 and 140: i. o corcundaA Fama, aquela deusa m
- Page 141 and 142: a sociedade menos pode concordar e
- Page 143: Männlein”, um personagem de cont
- Page 147 and 148: adversidades da vida exterior que
- Page 149 and 150: “A verdadeira imagem do passado p
- Page 151 and 152: poeta alemão vivo se encontrou com
- Page 153 and 154: e a área de desastres” de sua pr
- Page 155 and 156: ii. os tempos sombriosA pessoa que
- Page 157 and 158: inúmeros cafés que delineiam as r
- Page 159 and 160: escolhido expressar essa ambição
- Page 161 and 162: Além disso, em sua atitude diante
- Page 163 and 164: sua base material de modo tão cata
- Page 165 and 166: batizar”. Mas mesmo que desse cer
- Page 167 and 168: 1922): para Kafka, era “incompree
- Page 169 and 170: no sentido dessa rebelião dupla co
- Page 171 and 172: inclinado a supor que nosso planeta
- Page 173 and 174: substituem a coerência interna da
- Page 175 and 176: inesperadamente uma pesada garra”
- Page 177 and 178: como se poderia supor à primeira v
- Page 179 and 180: da ruptura da tradição — assim
- Page 181 and 182: invocações rituais, e os espírit
- Page 183 and 184: pensamento”, como algo “rico e
- Page 185 and 186: BERTOLT BRECHT: 1898-1956Você espe
- Page 187 and 188: No entanto, a biografia política d
- Page 189 and 190: esclarecer o que queria dizer, ele
- Page 191 and 192: Sieben Rosen hat der StrauchSechs g
- Page 193 and 194: viver num lugar onde ocorrem coisas
crítica literária alemã e no campo especializado da erudição goethiana, já fora
várias vezes recusado, e a aprovação entusiástica de Hofmannsthal veio num
momento em que Benjamin quase desistia de “encontrar quem o aceitasse”
(Briefe, vol. i, p. 300). Mas houve também uma desventura decisiva,
aparentemente nunca entendida de todo, que, sob as circunstâncias dadas, estava
necessariamente ligada a essa sorte. A única segurança material a que poderia
levar essa primeira aparição pública era a Habilitation, primeiro passo da
carreira universitária para a qual se preparava Benjamin. Isso certamente ainda
não bastaria para a sua subsistência — o chamado Privatdozent não recebia
salário —, mas provavelmente induziria seu pai a sustentá-lo até obter docência
plena, visto que essa era uma prática corrente naquela época. É difícil entender
agora como ele e seus amigos jamais puderam duvidar de que uma Habilitation
sob a autoridade de um professor universitário comum não estivesse fadada a um
final catastrófico. Certamente pode-se acreditar quando os cavalheiros
envolvidos declararam posteriormente não ter entendido uma única palavra do
estudo Origem do drama barroco alemão, que Benjamin lhes submetera. Como
entenderiam um escritor cujo maior orgulho era o de que “escrever consiste
largamente em citações — a mais louca técnica mosaica imaginável” — e que
colocava a maior ênfase sobre os seis motes que precediam o estudo: “Ninguém
[...] conseguiria reunir outras mais raras e preciosas”? (Briefe, vol. i, p. 366). Era
como se um autêntico mestre tivesse elaborado algum objeto único, apenas para
pô-lo à venda no bazar de pechinchas mais próximo. Na verdade, nem foi
preciso um anti-semitismo ou uma má vontade em relação a um forasteiro —
Benjamin se formara na Suíça durante a guerra e não era discípulo de ninguém
—, nem tampouco a habitual suspeita acadêmica em relação a tudo que não seja
garantidamente medíocre.
Entretanto — e é aí onde entram a falta de jeito e a má sorte —, na Alemanha
daquela época, havia uma outra forma, e foi exatamente o seu ensaio sobre
Goethe que arruinou a única oportunidade de Benjamin para uma carreira
universitária. Como ocorre com freqüência nos textos de Benjamin, esse estudo
era inspirado pela polêmica, e o ataque se referia ao livro de Friedrich Gundolf
sobre Goethe. A crítica de Benjamin era definitiva, e no entanto Benjamin pode
ter esperado maior compreensão da parte de Gundolf e outros membros do
círculo de Stefan George, grupo cujo mundo intelectual lhe fora inteiramente
familiar na juventude, do que da parte do establishment; e provavelmente não
precisaria ser membro do círculo para obter sua autorização acadêmica sob a
cátedra de um daqueles homens que, na época, estavam justamente começando a