Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt

hernandesjuan81
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23.03.2022 Views

ligado ao seu tema. Se, portanto, permanecem precisamente aquelas obras cujaverdade está mais profundamente encravada em seu tema, o observador que ascontempla muito tempo depois de sua própria época considera as realia tantomais extraordinárias na obra por terem desaparecido do mundo. Isso significaque o tema e o conteúdo de verdade, unidos no período inicial da obra,separaram-se em sua vida póstuma; o tema se torna mais extraordinário, aopasso que o conteúdo de verdade mantém sua ocultação original. Portanto, a umamedida sempre crescente, a interpretação do extraordinário e do singular, isto é,do tema, torna-se um pré-requisito para qualquer crítico posterior. Pode-secompará-lo a um paleógrafo diante de um pergaminho cujo texto apagado estácoberto pelos contornos mais fortes de uma escrita referente àquele texto. Assimcomo o paleógrafo teria de começar por ler o escrito, o crítico deve começarcomentando seu texto. E, a partir dessa atividade, surge imediatamente umcrítico inestimável de juízo crítico: só agora o crítico pode levantar a perguntabásica de toda a crítica — a saber, se o brilhante conteúdo de verdade da obra sedeve a seu tema ou se a sobrevivência do tema se deve ao conteúdo de verdade.Pois, quando eles se separam na obra, decidem sobre a imortalidade dela. Nessesentido, a história das obras de arte prepara a sua crítica, e é por isso que adistância histórica aumenta o seu poder. Se, para empregar uma analogia, encarasea obra crescente como uma pira funerária, seu comentador pode sercomparado ao químico, seu crítico a um alquimista. Enquanto o primeiro retém alenha e as cinzas, como únicos objetos de sua análise, o último se preocupaapenas com o enigma da própria chama: o enigma de estar viva. Assim, a críticaindaga sobre a verdade cuja chama viva continua a arder sobre os pesadostroncos do passado e as leves cinzas da vida que se foi.O crítico como um alquimista que pratica a obscura arte de transmutar oselementos fúteis do real no ouro brilhante e duradouro da verdade, ou antes deobservar e interpretar o processo histórico que realiza tal transfiguração mágica— o que quer que pensemos dessa figura, dificilmente corresponde a algumacoisa que realmente temos em mente quando classificamos um escritor de críticoliterário.Há, porém, um outro elemento menos objetivo que o simples fato de serinclassificável, envolvido na vida dos que “venceram na morte”. É o elemento damá sorte, e esse fator, muito predominante na vida de Benjamin, não pode aquiser ignorado, pois ele mesmo, que provavelmente nunca pensou ou sonhou coma fama póstuma, tinha uma extraordinária consciência dela. Em seus escritos, etambém em conversa, costumava falar sobre o “pequeno corcunda”, o “bucklicht

Männlein”, um personagem de conto de fadas alemão, de Des KnabenWunderhorn, a famosa coletânea da poesia popular alemã.Will ich in mein’ Keller gehn,Will mein Weinlein zapfen;Steht ein bucklicht Männlein da,Tät mir’n Krug wegschnappen.Will ich in mein Küchel gehn,Will mein Süpplein kochen;Steht ein bucklicht Männlein da,Hat mein Töpflein brochen.[Vou à minha adegaBeber o meu vinho;Lá está um corcundinha,Pegou minha garrafinha.Vou à minha cozinha,Cozinhar minha sopinha;Lá está um corcundinha,Quebrou minha panelinha.]O corcunda era um velho amigo de Benjamin, que o encontrou pela primeiravez quando, ainda criança, se deparou com o poema num livro infantil e nunca oesqueceu. Mas apenas uma vez (no final de Uma infância berlinense em torno de1900), antecipando a morte, tentou apreender “sua ‘vida inteira’ [...] como,segundo dizem, passa ante os olhos do moribundo” e fixou nitidamente quem e oque o aterrorizara tão cedo na vida e o acompanharia até a morte. Sua mãe, comomilhões de outras mães na Alemanha, costumava dizer “O sr. Desajeitado mandalembranças” (Ungeschickt lässt grüssen), sempre que ocorria uma dasincontáveis pequenas catástrofes da infância. E a criança sabia, é claro, o que eraessa estranha falta de jeito. A mãe se referia ao “corcundinha”, que fazia comque os objetos pregassem suas peças travessas às crianças; foi ele que lhe passouuma rasteira quando você caiu, e tirou o objeto de sua mão quando se quebrou. Edepois a criança se tornou o adulto que sabia o que a criança ainda ignorava, istoé, que não foi ele que provocou “o homenzinho” ao olhá-lo — como se fosse omenino que quisesse aprender o que é o medo —, mas foi o corcunda que olhoupara ele, e que a falta de jeito era uma má sorte. Pois “entre os que olham o

Männlein”, um personagem de conto de fadas alemão, de Des Knaben

Wunderhorn, a famosa coletânea da poesia popular alemã.

Will ich in mein’ Keller gehn,

Will mein Weinlein zapfen;

Steht ein bucklicht Männlein da,

Tät mir’n Krug wegschnappen.

Will ich in mein Küchel gehn,

Will mein Süpplein kochen;

Steht ein bucklicht Männlein da,

Hat mein Töpflein brochen.

[Vou à minha adega

Beber o meu vinho;

Lá está um corcundinha,

Pegou minha garrafinha.

Vou à minha cozinha,

Cozinhar minha sopinha;

Lá está um corcundinha,

Quebrou minha panelinha.]

O corcunda era um velho amigo de Benjamin, que o encontrou pela primeira

vez quando, ainda criança, se deparou com o poema num livro infantil e nunca o

esqueceu. Mas apenas uma vez (no final de Uma infância berlinense em torno de

1900), antecipando a morte, tentou apreender “sua ‘vida inteira’ [...] como,

segundo dizem, passa ante os olhos do moribundo” e fixou nitidamente quem e o

que o aterrorizara tão cedo na vida e o acompanharia até a morte. Sua mãe, como

milhões de outras mães na Alemanha, costumava dizer “O sr. Desajeitado manda

lembranças” (Ungeschickt lässt grüssen), sempre que ocorria uma das

incontáveis pequenas catástrofes da infância. E a criança sabia, é claro, o que era

essa estranha falta de jeito. A mãe se referia ao “corcundinha”, que fazia com

que os objetos pregassem suas peças travessas às crianças; foi ele que lhe passou

uma rasteira quando você caiu, e tirou o objeto de sua mão quando se quebrou. E

depois a criança se tornou o adulto que sabia o que a criança ainda ignorava, isto

é, que não foi ele que provocou “o homenzinho” ao olhá-lo — como se fosse o

menino que quisesse aprender o que é o medo —, mas foi o corcunda que olhou

para ele, e que a falta de jeito era uma má sorte. Pois “entre os que olham o

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