Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt
ligado ao seu tema. Se, portanto, permanecem precisamente aquelas obras cujaverdade está mais profundamente encravada em seu tema, o observador que ascontempla muito tempo depois de sua própria época considera as realia tantomais extraordinárias na obra por terem desaparecido do mundo. Isso significaque o tema e o conteúdo de verdade, unidos no período inicial da obra,separaram-se em sua vida póstuma; o tema se torna mais extraordinário, aopasso que o conteúdo de verdade mantém sua ocultação original. Portanto, a umamedida sempre crescente, a interpretação do extraordinário e do singular, isto é,do tema, torna-se um pré-requisito para qualquer crítico posterior. Pode-secompará-lo a um paleógrafo diante de um pergaminho cujo texto apagado estácoberto pelos contornos mais fortes de uma escrita referente àquele texto. Assimcomo o paleógrafo teria de começar por ler o escrito, o crítico deve começarcomentando seu texto. E, a partir dessa atividade, surge imediatamente umcrítico inestimável de juízo crítico: só agora o crítico pode levantar a perguntabásica de toda a crítica — a saber, se o brilhante conteúdo de verdade da obra sedeve a seu tema ou se a sobrevivência do tema se deve ao conteúdo de verdade.Pois, quando eles se separam na obra, decidem sobre a imortalidade dela. Nessesentido, a história das obras de arte prepara a sua crítica, e é por isso que adistância histórica aumenta o seu poder. Se, para empregar uma analogia, encarasea obra crescente como uma pira funerária, seu comentador pode sercomparado ao químico, seu crítico a um alquimista. Enquanto o primeiro retém alenha e as cinzas, como únicos objetos de sua análise, o último se preocupaapenas com o enigma da própria chama: o enigma de estar viva. Assim, a críticaindaga sobre a verdade cuja chama viva continua a arder sobre os pesadostroncos do passado e as leves cinzas da vida que se foi.O crítico como um alquimista que pratica a obscura arte de transmutar oselementos fúteis do real no ouro brilhante e duradouro da verdade, ou antes deobservar e interpretar o processo histórico que realiza tal transfiguração mágica— o que quer que pensemos dessa figura, dificilmente corresponde a algumacoisa que realmente temos em mente quando classificamos um escritor de críticoliterário.Há, porém, um outro elemento menos objetivo que o simples fato de serinclassificável, envolvido na vida dos que “venceram na morte”. É o elemento damá sorte, e esse fator, muito predominante na vida de Benjamin, não pode aquiser ignorado, pois ele mesmo, que provavelmente nunca pensou ou sonhou coma fama póstuma, tinha uma extraordinária consciência dela. Em seus escritos, etambém em conversa, costumava falar sobre o “pequeno corcunda”, o “bucklicht
Männlein”, um personagem de conto de fadas alemão, de Des KnabenWunderhorn, a famosa coletânea da poesia popular alemã.Will ich in mein’ Keller gehn,Will mein Weinlein zapfen;Steht ein bucklicht Männlein da,Tät mir’n Krug wegschnappen.Will ich in mein Küchel gehn,Will mein Süpplein kochen;Steht ein bucklicht Männlein da,Hat mein Töpflein brochen.[Vou à minha adegaBeber o meu vinho;Lá está um corcundinha,Pegou minha garrafinha.Vou à minha cozinha,Cozinhar minha sopinha;Lá está um corcundinha,Quebrou minha panelinha.]O corcunda era um velho amigo de Benjamin, que o encontrou pela primeiravez quando, ainda criança, se deparou com o poema num livro infantil e nunca oesqueceu. Mas apenas uma vez (no final de Uma infância berlinense em torno de1900), antecipando a morte, tentou apreender “sua ‘vida inteira’ [...] como,segundo dizem, passa ante os olhos do moribundo” e fixou nitidamente quem e oque o aterrorizara tão cedo na vida e o acompanharia até a morte. Sua mãe, comomilhões de outras mães na Alemanha, costumava dizer “O sr. Desajeitado mandalembranças” (Ungeschickt lässt grüssen), sempre que ocorria uma dasincontáveis pequenas catástrofes da infância. E a criança sabia, é claro, o que eraessa estranha falta de jeito. A mãe se referia ao “corcundinha”, que fazia comque os objetos pregassem suas peças travessas às crianças; foi ele que lhe passouuma rasteira quando você caiu, e tirou o objeto de sua mão quando se quebrou. Edepois a criança se tornou o adulto que sabia o que a criança ainda ignorava, istoé, que não foi ele que provocou “o homenzinho” ao olhá-lo — como se fosse omenino que quisesse aprender o que é o medo —, mas foi o corcunda que olhoupara ele, e que a falta de jeito era uma má sorte. Pois “entre os que olham o
- Page 91 and 92: e constantemente fiel à história
- Page 93 and 94: oferecida pelo amor, mútuo amor
- Page 95 and 96: aceitável, quanto desdenhosa em re
- Page 97 and 98: entanto, o ponto da questão é que
- Page 99 and 100: suficiente para ter um pouco mais d
- Page 101 and 102: fazer com que o sonho de uma outra
- Page 103 and 104: i. o poeta relutanteHermann Broch f
- Page 105 and 106: algumas novas histórias, incluindo
- Page 107 and 108: compreensão última de Broch, o de
- Page 109 and 110: Posteriormente foi-lhe posta, com i
- Page 111 and 112: ii. a teoria do valorEm seu estági
- Page 113 and 114: essa transformação das idéias em
- Page 115 and 116: salvadora que dissolve a consciênc
- Page 117 and 118: iii. a teoria do conhecimentoComo c
- Page 119 and 120: arte. 41 E no estudo sobre Hofmanns
- Page 121 and 122: olhos de um deus, que o abarcaria t
- Page 123 and 124: envolvido pela maquinaria do mundo
- Page 125 and 126: é apenas um outro nome para a “p
- Page 127 and 128: iv. o absoluto terrenoTudo o que Br
- Page 129 and 130: correspondem a dois tipos de ciênc
- Page 131 and 132: mostrar que ele brota objetivamente
- Page 133 and 134: que queria era responder à pergunt
- Page 135 and 136: sua fórmula matemática. “A rosa
- Page 137 and 138: 51 Ibid., p. 74.52 “Der Zerfall d
- Page 139 and 140: i. o corcundaA Fama, aquela deusa m
- Page 141: a sociedade menos pode concordar e
- Page 145 and 146: crítica literária alemã e no cam
- Page 147 and 148: adversidades da vida exterior que
- Page 149 and 150: “A verdadeira imagem do passado p
- Page 151 and 152: poeta alemão vivo se encontrou com
- Page 153 and 154: e a área de desastres” de sua pr
- Page 155 and 156: ii. os tempos sombriosA pessoa que
- Page 157 and 158: inúmeros cafés que delineiam as r
- Page 159 and 160: escolhido expressar essa ambição
- Page 161 and 162: Além disso, em sua atitude diante
- Page 163 and 164: sua base material de modo tão cata
- Page 165 and 166: batizar”. Mas mesmo que desse cer
- Page 167 and 168: 1922): para Kafka, era “incompree
- Page 169 and 170: no sentido dessa rebelião dupla co
- Page 171 and 172: inclinado a supor que nosso planeta
- Page 173 and 174: substituem a coerência interna da
- Page 175 and 176: inesperadamente uma pesada garra”
- Page 177 and 178: como se poderia supor à primeira v
- Page 179 and 180: da ruptura da tradição — assim
- Page 181 and 182: invocações rituais, e os espírit
- Page 183 and 184: pensamento”, como algo “rico e
- Page 185 and 186: BERTOLT BRECHT: 1898-1956Você espe
- Page 187 and 188: No entanto, a biografia política d
- Page 189 and 190: esclarecer o que queria dizer, ele
- Page 191 and 192: Sieben Rosen hat der StrauchSechs g
Männlein”, um personagem de conto de fadas alemão, de Des Knaben
Wunderhorn, a famosa coletânea da poesia popular alemã.
Will ich in mein’ Keller gehn,
Will mein Weinlein zapfen;
Steht ein bucklicht Männlein da,
Tät mir’n Krug wegschnappen.
Will ich in mein Küchel gehn,
Will mein Süpplein kochen;
Steht ein bucklicht Männlein da,
Hat mein Töpflein brochen.
[Vou à minha adega
Beber o meu vinho;
Lá está um corcundinha,
Pegou minha garrafinha.
Vou à minha cozinha,
Cozinhar minha sopinha;
Lá está um corcundinha,
Quebrou minha panelinha.]
O corcunda era um velho amigo de Benjamin, que o encontrou pela primeira
vez quando, ainda criança, se deparou com o poema num livro infantil e nunca o
esqueceu. Mas apenas uma vez (no final de Uma infância berlinense em torno de
1900), antecipando a morte, tentou apreender “sua ‘vida inteira’ [...] como,
segundo dizem, passa ante os olhos do moribundo” e fixou nitidamente quem e o
que o aterrorizara tão cedo na vida e o acompanharia até a morte. Sua mãe, como
milhões de outras mães na Alemanha, costumava dizer “O sr. Desajeitado manda
lembranças” (Ungeschickt lässt grüssen), sempre que ocorria uma das
incontáveis pequenas catástrofes da infância. E a criança sabia, é claro, o que era
essa estranha falta de jeito. A mãe se referia ao “corcundinha”, que fazia com
que os objetos pregassem suas peças travessas às crianças; foi ele que lhe passou
uma rasteira quando você caiu, e tirou o objeto de sua mão quando se quebrou. E
depois a criança se tornou o adulto que sabia o que a criança ainda ignorava, isto
é, que não foi ele que provocou “o homenzinho” ao olhá-lo — como se fosse o
menino que quisesse aprender o que é o medo —, mas foi o corcunda que olhou
para ele, e que a falta de jeito era uma má sorte. Pois “entre os que olham o