23.03.2022 Views

Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

a sociedade menos pode concordar e sempre relutará muito em lhe conceder seu

selo de aprovação. Para dizê-lo claramente, seria um equívoco hoje recomendar

Walter Benjamin como ensaísta e crítico literário, tal como teria sido um

equívoco em 1924 recomendar Kafka como novelista e escritor de histórias

curtas. Para descrever adequadamente sua obra e seu perfil de autor dentro de

nosso quadro habitual de referências, seria preciso apresentar uma série imensa

de declarações negativas, tais como: sua erudição era grande, mas não era um

erudito; o assunto dos seus temas compreendia textos e interpretação, mas não

era um filólogo; sentia-se muitíssimo atraído não pela religião, mas pela teologia

e o tipo teológico de interpretação pelo qual o próprio texto é sagrado, mas não

era teólogo, nem se interessava particularmente pela Bíblia; era um escritor nato,

mas sua maior ambição era produzir uma obra que consistisse inteiramente em

citações; foi o primeiro alemão a traduzir Proust (juntamente com Franz Hessel)

e St.-John Perse, e antes disso traduzira Quadros parisienses de Baudelaire, mas

não era tradutor; resenhava livros e escreveu uma série de ensaios sobre autores

vivos e mortos, mas não era um crítico literário; escreveu um livro sobre o

barroco alemão e deixou um imenso estudo inacabado sobre o século xix

francês, mas não era historiador, literato ou o que for; tentarei mostrar que ele

pensava poeticamente, mas não era poeta nem filósofo.

Todavia, nos raros momentos em que se preocupou em definir o que estava

fazendo, Benjamin se considerava um crítico literário, e, se se pode dizer que

tenha de algum modo aspirado a uma posição na vida, teria sido a de “o único

verdadeiro crítico da literatura alemã” (como colocou Scholem em uma das

poucas belíssimas cartas ao amigo que foram publicadas), com a ressalva de que

a própria idéia de assim se tornar um membro útil da sociedade tê-lo-ia

repugnado. Sem dúvida, concordava com Baudelaire: “ tre un homme utile m’a

paru toujours quelque chose de bien hideux”. Nos parágrafos introdutórios ao

ensaio sobre Afinidades eletivas, Benjamin expôs o que entendia ser a tarefa da

crítica literária. Começa por distinguir entre um comentário e uma crítica. (Sem

mencioná-lo, talvez sem sequer se dar conta disso, ele usou o termo Kritik, que

no uso comum significa crítica, tal como Kant o empregou ao falar de uma

Crítica da razão pura.)

A crítica [escreveu ele] se interessa pelo conteúdo verdadeiro de uma obra de

arte, o comentário pelo assunto do seu tema. A relação entre ambas é

determinada por aquela lei básica da literatura segundo a qual o conteúdo de

verdade da obra é tanto mais relevante quanto mais invisível e intimamente está

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!