Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt

hernandesjuan81
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23.03.2022 Views

ainda publicada) sabiam, além de qualquer dúvida, que ele era um dos mestresda prosa moderna. Walter Benjamin cedo obteve esse reconhecimento, e nãoapenas entre aqueles cujos nomes na época ainda eram desconhecidos, comoGerhard Scholem, seu amigo de juventude, e Theodor Wiesengrund Adorno, seuprimeiro e único discípulo, que juntos são os responsáveis pela edição póstumade suas obras e cartas. 1 Fica-se tentado a dizer que o reconhecimento imediato einstintivo veio de Hugo von Hofmannsthal, que publicou em 1924 o ensaio deBenjamin sobre as Afinidades eletivas de Goethe, e de Bertolt Brecht, que,dizem, ao receber a notícia da morte de Benjamin teria dito que essa era aprimeira perda efetiva que Hitler causava à literatura alemã. Não podemos saberse existe algo como um gênio totalmente desprezado ou se é ilusão de quem nãoé gênio, mas podemos estar razoavelmente seguros de que seu quinhão não seráa fama póstuma.A fama é um fenômeno social; ad gloriam non est satis unius opinio (comopedante e sabiamente observou Sêneca), “para a fama não basta a opinião deum”, embora baste para a amizade e o amor. E nenhuma sociedade podefuncionar adequadamente sem uma classificação, sem uma disposição de coisase homens em classes e tipos prescritos. Essa classificação necessária é a base detoda discriminação social, e a discriminação, não obstante a opinião contráriaatual, é um elemento constituinte do âmbito social, tanto quanto a igualdade éum elemento constituinte do âmbito político. A questão é que, na sociedade,cada um deve responder à pergunta sobre o que é — diferente da pergunta sobrequem é —, qual seu papel e sua função, e a resposta, evidentemente, nunca podeser: Sou único, não devido à arrogância aí implícita, mas porque a resposta seriasem sentido. No caso de Benjamin, o problema (se é que o era) pode serretrospectivamente diagnosticado com grande precisão; quando Hofmannsthalleu o longo ensaio sobre Goethe, cujo autor era completamente desconhecido,considerou-o “schlechthin unvergleichlich” (“absolutamente incomparável”), e oproblema é que ele estava literalmente certo: era algo que não se poderiacomparar a nada mais na literatura existente. O problema com tudo o queescreveu Benjamin é que sempre demonstrava ser sui generis.Assim, a fama póstuma parece ser o quinhão dos inclassificáveis, isto é,daqueles cuja obra não se adéqua à ordem existente, nem inaugura um novogênero que, ele mesmo, constitua uma futura classificação. Inumeráveistentativas de escrever à la Kafka, todas melancólicos fracassos, apenas servirampara acentuar o caráter único de Kafka, aquela originalidade absoluta que nãopode recuar a nenhum predecessor, nem suportar nenhum seguidor. É com o que

a sociedade menos pode concordar e sempre relutará muito em lhe conceder seuselo de aprovação. Para dizê-lo claramente, seria um equívoco hoje recomendarWalter Benjamin como ensaísta e crítico literário, tal como teria sido umequívoco em 1924 recomendar Kafka como novelista e escritor de históriascurtas. Para descrever adequadamente sua obra e seu perfil de autor dentro denosso quadro habitual de referências, seria preciso apresentar uma série imensade declarações negativas, tais como: sua erudição era grande, mas não era umerudito; o assunto dos seus temas compreendia textos e interpretação, mas nãoera um filólogo; sentia-se muitíssimo atraído não pela religião, mas pela teologiae o tipo teológico de interpretação pelo qual o próprio texto é sagrado, mas nãoera teólogo, nem se interessava particularmente pela Bíblia; era um escritor nato,mas sua maior ambição era produzir uma obra que consistisse inteiramente emcitações; foi o primeiro alemão a traduzir Proust (juntamente com Franz Hessel)e St.-John Perse, e antes disso traduzira Quadros parisienses de Baudelaire, masnão era tradutor; resenhava livros e escreveu uma série de ensaios sobre autoresvivos e mortos, mas não era um crítico literário; escreveu um livro sobre obarroco alemão e deixou um imenso estudo inacabado sobre o século xixfrancês, mas não era historiador, literato ou o que for; tentarei mostrar que elepensava poeticamente, mas não era poeta nem filósofo.Todavia, nos raros momentos em que se preocupou em definir o que estavafazendo, Benjamin se considerava um crítico literário, e, se se pode dizer quetenha de algum modo aspirado a uma posição na vida, teria sido a de “o únicoverdadeiro crítico da literatura alemã” (como colocou Scholem em uma daspoucas belíssimas cartas ao amigo que foram publicadas), com a ressalva de quea própria idéia de assim se tornar um membro útil da sociedade tê-lo-iarepugnado. Sem dúvida, concordava com Baudelaire: “ tre un homme utile m’aparu toujours quelque chose de bien hideux”. Nos parágrafos introdutórios aoensaio sobre Afinidades eletivas, Benjamin expôs o que entendia ser a tarefa dacrítica literária. Começa por distinguir entre um comentário e uma crítica. (Semmencioná-lo, talvez sem sequer se dar conta disso, ele usou o termo Kritik, queno uso comum significa crítica, tal como Kant o empregou ao falar de umaCrítica da razão pura.)A crítica [escreveu ele] se interessa pelo conteúdo verdadeiro de uma obra dearte, o comentário pelo assunto do seu tema. A relação entre ambas édeterminada por aquela lei básica da literatura segundo a qual o conteúdo deverdade da obra é tanto mais relevante quanto mais invisível e intimamente está

ainda publicada) sabiam, além de qualquer dúvida, que ele era um dos mestres

da prosa moderna. Walter Benjamin cedo obteve esse reconhecimento, e não

apenas entre aqueles cujos nomes na época ainda eram desconhecidos, como

Gerhard Scholem, seu amigo de juventude, e Theodor Wiesengrund Adorno, seu

primeiro e único discípulo, que juntos são os responsáveis pela edição póstuma

de suas obras e cartas. 1 Fica-se tentado a dizer que o reconhecimento imediato e

instintivo veio de Hugo von Hofmannsthal, que publicou em 1924 o ensaio de

Benjamin sobre as Afinidades eletivas de Goethe, e de Bertolt Brecht, que,

dizem, ao receber a notícia da morte de Benjamin teria dito que essa era a

primeira perda efetiva que Hitler causava à literatura alemã. Não podemos saber

se existe algo como um gênio totalmente desprezado ou se é ilusão de quem não

é gênio, mas podemos estar razoavelmente seguros de que seu quinhão não será

a fama póstuma.

A fama é um fenômeno social; ad gloriam non est satis unius opinio (como

pedante e sabiamente observou Sêneca), “para a fama não basta a opinião de

um”, embora baste para a amizade e o amor. E nenhuma sociedade pode

funcionar adequadamente sem uma classificação, sem uma disposição de coisas

e homens em classes e tipos prescritos. Essa classificação necessária é a base de

toda discriminação social, e a discriminação, não obstante a opinião contrária

atual, é um elemento constituinte do âmbito social, tanto quanto a igualdade é

um elemento constituinte do âmbito político. A questão é que, na sociedade,

cada um deve responder à pergunta sobre o que é — diferente da pergunta sobre

quem é —, qual seu papel e sua função, e a resposta, evidentemente, nunca pode

ser: Sou único, não devido à arrogância aí implícita, mas porque a resposta seria

sem sentido. No caso de Benjamin, o problema (se é que o era) pode ser

retrospectivamente diagnosticado com grande precisão; quando Hofmannsthal

leu o longo ensaio sobre Goethe, cujo autor era completamente desconhecido,

considerou-o “schlechthin unvergleichlich” (“absolutamente incomparável”), e o

problema é que ele estava literalmente certo: era algo que não se poderia

comparar a nada mais na literatura existente. O problema com tudo o que

escreveu Benjamin é que sempre demonstrava ser sui generis.

Assim, a fama póstuma parece ser o quinhão dos inclassificáveis, isto é,

daqueles cuja obra não se adéqua à ordem existente, nem inaugura um novo

gênero que, ele mesmo, constitua uma futura classificação. Inumeráveis

tentativas de escrever à la Kafka, todas melancólicos fracassos, apenas serviram

para acentuar o caráter único de Kafka, aquela originalidade absoluta que não

pode recuar a nenhum predecessor, nem suportar nenhum seguidor. É com o que

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