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Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt

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sua fórmula matemática. “A rosa-dos-ventos cuja função é mostrar de qual parte

do mundo está soprando o vento da história; com sua inscrição ‘O Justo Faz o

Poder’ ela aponta para o Paraíso, com ‘O Poder faz o Injusto’ aponta para o

Purgatório, com ‘O Injusto faz o Poder’ aponta para o Inferno, mas com ‘O

Poder faz o Justo’ aponta para a vida comum na Terra; e como o que

repetidamente ameaça troar sobre a humanidade é a tempestade do demônio, o

homem em geral se contenta modestamente com o terreno ‘O Poder faz o Justo’,

embora à espera das brisas paradisíacas — quando então não haverá mais

nenhuma pena de morte sobre toda a vasta orbe da Terra —, sabendo porém que

o milagre só virá quando estiver pronto para vir. O milagre de ‘O Justo faz o

Poder’ exige primeiro e acima de tudo que o Justo seja dotado de Poder.” 91

Por trás dessas frases, sentimos nitidamente o que Broch não diz e, nesse

contexto, provavelmente nem pretendeu dizer. Sabemos, a partir de A morte de

Virgílio e também do caráter do doutor em O tentador, que para Broch todas as

relações com os homens são ultimamente governadas pela idéia de

“prestimosidade”, pela imperatividade do pedido de auxílio. O absoluto do

“apelo ético” (“a unidade do conceito se mantém inviolada, inviolado o requisito

ético”) 92 era algo que admitia tão plenamente que julgava não precisar sequer de

demonstração. “O propósito do apelo ético reside no absoluto e no infinito”, 93 o

que significa que todo gesto ético é realizado na esfera do absoluto e o pedido de

auxílio dos homens entre si é interminável e inesgotável. Assim como Broch

admitia plenamente dever abandonar imediatamente qualquer trabalho, qualquer

atividade, a fim de prestar auxílio quando necessário, da mesma forma admitia

última e plenamente dever abandonar a literatura, pois começara a duvidar que

esta pudesse satisfazer sua “obrigação para com o absoluto da cognição”. 94

Começara sobretudo a duvidar que a literatura e a cognição pudessem sequer

efetuar o salto a partir do conhecimento do que é necessário para auxiliar os que

precisam. A “missão” de que tanto falava Broch, a “tarefa inelutavelmente

imposta” que via por todos os lugares, tinha uma natureza última que não era

lógica nem epistemológica, embora a tomasse e demonstrasse sua presença geral

na lógica e na epistemologia. A missão era o imperativo ético, e a tarefa à qual se

podia escapar era o pedido de auxílio dos homens.

1 “Gedankenzum Problem der Erkenntnis in der Musik”, in Essays (Zurique, 1955), vol. ii, p. 100.

2 “Hofmannsthal und seine Zeit”, op. cit., vol. i, p. 140.

3 Infelizmente, só se veio a saber tarde demais, a partir de seus papéis póstumos, que Broch pretendera

chamá-lo Der Wanderer [O andarilho], fato que não é insignificante, pois fornece a evidência de que, ao

longo de sua última revisão, Broch considerou como herói do livro o caráter do doutor, e não o de Marius

Ratti.

4 Esse milagre de remodelação não pode ser mais detectado na edição atual, onde, para facilitar a leitura,

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