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Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt

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sentido de um eu produtor isolado, o sujeito de atos específicos. Mas o que tem

uma importância muito mais decisiva é que, sendo um artista, ele interpretou o

fazer como uma espécie de criação do mundo e exigiu dele o tipo de “recriação

do mundo” que originalmente requisitara da obra de arte. Se a política pudesse

algum dia se converter no que ele dela exigiu, seria de fato uma “obra de arte

ética”. No fazer, coincidem as duas capacidades fundamentais do homem: a

faculdade criativa envolvida na literatura e a faculdade cognitiva de domínio do

mundo envolvida na ciência. Para Broch, portanto, a política era realmente uma

arte, criação do mundo convertida em ciência e, simultaneamente, ciência

convertida em arte. É verdade que ele nunca formulou as coisas dessa forma,

mas o material fragmentário de que dispomos nos permite ao menos conjeturar

sobre as linhas básicas de sua concepção fundamental.

Isso, de qualquer maneira, é o que em última análise pretende a cognição: ela

deseja o feito. Como a literatura não fazia nada, Broch afastou-se da literatura,

rejeitou a filosofia porque esta se limitava à mera contemplação e ao

pensamento, e terminou por colocar todas as suas esperanças na política. A

preocupação central de Broch é sempre a redenção, a redenção da morte, tanto

em sua política, como em sua epistemologia e sua ficção. Os elementos utópicos

de uma política orientada para a redenção não podem ser deixados de lado.

Entretanto, devemos evitar subestimar o realismo que guiou Broch em suas

reflexões concretas e que o impediu de aplicar dogmática e equivocadamente à

política o absoluto terreno que vislumbrara na teoria do conhecimento.

A crença última de Broch encontrava-se no absoluto terreno. Reconfortou-se

com a percepção de que se pode encontrar e demonstrar algo absoluto na Terra, e

que mesmo o âmbito político — isto é, a conglomeração intrinsecamente

anárquica de seres humanos nas condições da vida na Terra — contém um

absoluto limitador. Isso significava que devia existir algo como uma “justiça

absoluta” de onde derivaria uma nova declaração dos “direitos do homem”, que

então manteria a mesma relação com as atualidades políticas que mantém a

matemática com a física. Sob sua soberania, um “sujeito criador de direito (e

portanto mentalmente justo)” produtor de direito corresponderia exatamente à

“pessoa física” ou ao “ato de ver em si”. 90 Graças a essas percepções, que

tendiam cada vez mais a se centrar em torno do “homem em sua máxima

abstração”, Broch podia se resignar aos fatos do âmbito político tal como o

matemático está preparado para se resignar aos fatos do espaço físico. Assim

talvez a bela figura poética de linguagem que uma vez empregou para formular

os fatos e as possibilidades da vida política deva também ter lhe parecido como

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