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Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt

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pela repetição”, ao passo que, posteriormente, só o concederia na medida em que

a literatura e a expressão literária não podem oferecer algo melhor, enquanto a

matemática, ao fazer equações, e certamente a lógica absoluta que subjaz à

matemática (é claro que não em algo concreto, mas como modelo de toda

cognição possível) estão perfeitamente capacitadas para assumir essa função de

transformar toda seqüência temporal em coexistência espacial.

É notável a freqüência com que Broch emprega palavras como “compulsão”,

“necessidade”, “necessidade obrigatória” nesses contextos, e o quanto dependia

do caráter coercitivo da argumentação lógica. No desvio radical do mythos para

o logos, que constituiu o ponto de partida para a sua teoria do conhecimento, ele

quis conscientemente substituir a coercitividade da visão mítica do mundo pela

necessidade obrigatória do argumento lógico. A necessidade obrigatória é, por

assim dizer, o denominador comum das visões mítica e lógica do mundo. Apenas

aquilo que é necessário e, portanto, aparece ao homem como compulsório pode

reivindicar validade absoluta. Dessa identificação entre necessidade e absoluto

provém a atitude singularmente ambivalente de Broch em relação à questão da

liberdade humana. Realmente ele não tinha uma opinião mais elevada da

liberdade do que da filosofia: de qualquer forma, sempre a buscou apenas no

âmbito da psicologia e nunca lhe concedeu a dignidade metafísica e fundante da

ciência, que sempre concedeu à necessidade.

Para Broch, a liberdade é o esforço anárquico, latente em cada eu, em direção

ao “desapego” diante dos companheiros humanos. Esse esforço já vem

representado no mundo animal pelo “mais isolado”. Se o homem segue apenas o

empenho pela liberdade do seu eu, é “o animal anárquico”. 59 Mas, como o

homem é “incapaz de subsistir sem seus companheiros homens, portanto incapaz

de viver plenamente suas tendências anárquicas”, ele tenta subjugar e escravizar

outros seres humanos. O aspecto rebeldemente anárquico do eu que, embora

dependa de outros homens, prefere permanecer em total não-relação interior com

eles, em nome da independência, já aparece nos seus textos iniciais como uma

das fontes do mal radical. Mas nesses textos iniciais fica obscurecido pela

análise de Broch sobre a forma puramente estética do mal real. Nos escritos

posteriores, todos orientados em termos da teoria do conhecimento, a situação se

inverte. Da teoria do conhecimento segue-se diretamente a conseqüência política

de que o homem nas suas relações com seus companheiros humanos deve ser

submetido à mesmíssima compulsão a que necessariamente se submete em sua

cognição, em outras palavras, no seu intercurso consigo mesmo. Broch nunca

acreditou que essa esfera política, onde o homem age externamente e é

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