Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt

hernandesjuan81
from hernandesjuan81 More from this publisher
23.03.2022 Views

tarefa de superar a morte é imposta e atribuída à cognição humana, nãosimplesmente pelo desejo apaixonado de se manter vivo, a partir do impulsovital nu e cru que o homem partilha com os animais. Ela emerge antes do terrenodo próprio eu cognitivo e, por assim dizer, incorpóreo. Pois, na medida em que oeu é o sujeito de conhecimento, é “completamente incapaz de imaginar suaprópria morte”. 49Dado que o eu é incapaz de conceber seu próprio começo e fim, a primeiraexperiência fundamental do homem, a qual ele deriva inteiramente do mundoempiricamente dado, é a experiência do tempo, da transitoriedade e da morte.Assim, o mundo externo se apresenta ao “núcleo do eu” não só comointeiramente estranho, mas também como inteiramente ameaçador. Não érealmente reconhecido pelo eu como “mundo”, mas como “não-eu”. O “núcleoepistemológico do eu”, visto nada conhecer da transitoriedade, também nadasabe sobre o mundo exterior e ignora que, nesse mundo estranho, nada é “tãointeiramente estranho a ele quanto o tempo”. 50 Assim Broch chega à suaconcepção de tempo, que lhe é muito característica e, tanto quanto sei,totalmente original. Enquanto todas as especulações ocidentais sobre o tempo,desde as Confissões de Agostinho até a Crítica da razão pura de Kant, vêem otempo como um “sentido interior”, para Broch, pelo contrário, o tempo assume afunção comumente atribuída ao espaço. O tempo é o “mundo exterior maisinterior”, 51 isto é, o sentido pelo qual o mundo exterior nos é dado internamente.Mas essa exterioridade que se manifesta tão internamente não pertence àestrutura real do núcleo do eu, não mais que a morte, embora a morte se situe nointerior da vida, escavando-a a partir de seu interior e, como tal, pertencendo aela. A categoria de espaço, por outro lado, é para ele não a categoria do mundoexterior, pois está imediatamente presente dentro do homem, em seu “núcleo doeu”. Se o homem quer dominar o “não-eu” através do mythos ou do logos, sópode fazê-lo “aniquilando” e abolindo o tempo, “e essa abolição se chamaespaço”. 52 Assim, para Broch, a música, normalmente vista como a arte maisligada ao tempo, é pelo contrário “a transformação do tempo em espaço”; é a“abolição do tempo” e isso, evidentemente, significa sempre a “abolição dotempo que se apressa em direção à morte”, metamorfose da seqüência emcoexistência, o que ele chama de “arquiteturação da passagem do tempo”, naqual realiza-se “a abolição direta da morte na consciência da humanidade”. 53Evidentemente, aqui se trata de realizar uma simultaneidade que transformatoda a seqüência em coexistência, onde o curso temporalmente estruturado domundo, com sua riqueza empírica, é apresentado como se pudesse ser visto pelos

olhos de um deus, que o abarcaria total e simultaneamente. O homem estáfadado a se sentir aparentado a esse deus devido à alienação do eu humano emrelação ao mundo e ao tempo (para Broch, são o mesmo). A estrutura do núcleodo eu, que é atemporal, indica que o homem está realmente destinado a viver emtal absoluto. Que assim é fica evidente em todos os modos especificamentehumanos de comportamento. Fica evidente sobretudo na estrutura da linguagem,a qual, para Broch, nunca é um meio de comunicação, nem tem relação algumacom o fato de que, na Terra, habita uma pluralidade de homens, e não o Homem,os quais devem se comunicar entre si. Ele não o diz, mas é como se sustentasseque, para os fins de comunicação entre os seres humanos, bastariam sonsanimais. Para ele, o essencial quanto à linguagem é o fato de ela indicarsintaticamente uma anulação do tempo “no interior da frase”, poisnecessariamente “coloca o sujeito e o objeto numa relação de simultaneidade”. 54A “atribuição” que é imposta ao enunciador é a de “tornar audíveis e visíveis asunidades cognitivas”, e é esta “a única tarefa da linguagem”. 55 O que quer que secongele na simultaneidade da frase — a saber, o pensamento, que “num únicomomento pode abranger conjuntos de extensão extraordinária” — é arrancado àpassagem do tempo. Certamente nem seria preciso dizer que essas consideraçõesoferecem, inter alia, um comentário sobre o estilo lírico de Broch, que é líricoapenas na aparência, com suas frases extraordinariamente longas e as repetiçõesextraordinariamente exatas em seu interior.Essas especulações lingüísticas datam dos últimos anos da vida de Broch,quando tentava resolver o problema da simultaneidade no âmbito do logos. Masa convicção de que a simultaneidade da expressão lingüística oferece umvislumbre da eternidade, que nela o “logos e a vida” podem se converter “umavez mais em uno”, 56 e que na verdade “a exigência de simultaneidade é oobjetivo real de toda época, de toda poesia” 57 — tudo isso já se pode encontrarno ensaio muito anterior sobre Joyce. Lá, como posteriormente, ele estavapreocupado em “trazer para uma unidade a experiência e as impressõesconsecutivas, empurrando a sucessão de volta para a unidade do simultâneo,relegando o que é temporalmente restrito à atemporalidade da mônada”, quemais tarde chamaria de “núcleo do eu” 58 (grifo meu). No período posterior,porém, não mais se satisfazia em “estabelecer a supratemporalidade na obra dearte”, mas queria imprimir a mesma supratemporalidade da simultaneidade àprópria vida. Na época do ensaio sobre Joyce, ele ainda concedia que “esseempenho pela simultaneidade [...] não pode romper a necessidade de que acoexistência e a concatenação devam ser expressas por uma seqüência, o único

tarefa de superar a morte é imposta e atribuída à cognição humana, não

simplesmente pelo desejo apaixonado de se manter vivo, a partir do impulso

vital nu e cru que o homem partilha com os animais. Ela emerge antes do terreno

do próprio eu cognitivo e, por assim dizer, incorpóreo. Pois, na medida em que o

eu é o sujeito de conhecimento, é “completamente incapaz de imaginar sua

própria morte”. 49

Dado que o eu é incapaz de conceber seu próprio começo e fim, a primeira

experiência fundamental do homem, a qual ele deriva inteiramente do mundo

empiricamente dado, é a experiência do tempo, da transitoriedade e da morte.

Assim, o mundo externo se apresenta ao “núcleo do eu” não só como

inteiramente estranho, mas também como inteiramente ameaçador. Não é

realmente reconhecido pelo eu como “mundo”, mas como “não-eu”. O “núcleo

epistemológico do eu”, visto nada conhecer da transitoriedade, também nada

sabe sobre o mundo exterior e ignora que, nesse mundo estranho, nada é “tão

inteiramente estranho a ele quanto o tempo”. 50 Assim Broch chega à sua

concepção de tempo, que lhe é muito característica e, tanto quanto sei,

totalmente original. Enquanto todas as especulações ocidentais sobre o tempo,

desde as Confissões de Agostinho até a Crítica da razão pura de Kant, vêem o

tempo como um “sentido interior”, para Broch, pelo contrário, o tempo assume a

função comumente atribuída ao espaço. O tempo é o “mundo exterior mais

interior”, 51 isto é, o sentido pelo qual o mundo exterior nos é dado internamente.

Mas essa exterioridade que se manifesta tão internamente não pertence à

estrutura real do núcleo do eu, não mais que a morte, embora a morte se situe no

interior da vida, escavando-a a partir de seu interior e, como tal, pertencendo a

ela. A categoria de espaço, por outro lado, é para ele não a categoria do mundo

exterior, pois está imediatamente presente dentro do homem, em seu “núcleo do

eu”. Se o homem quer dominar o “não-eu” através do mythos ou do logos, só

pode fazê-lo “aniquilando” e abolindo o tempo, “e essa abolição se chama

espaço”. 52 Assim, para Broch, a música, normalmente vista como a arte mais

ligada ao tempo, é pelo contrário “a transformação do tempo em espaço”; é a

“abolição do tempo” e isso, evidentemente, significa sempre a “abolição do

tempo que se apressa em direção à morte”, metamorfose da seqüência em

coexistência, o que ele chama de “arquiteturação da passagem do tempo”, na

qual realiza-se “a abolição direta da morte na consciência da humanidade”. 53

Evidentemente, aqui se trata de realizar uma simultaneidade que transforma

toda a seqüência em coexistência, onde o curso temporalmente estruturado do

mundo, com sua riqueza empírica, é apresentado como se pudesse ser visto pelos

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!