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Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt

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iii. a teoria do conhecimento

Como conseguiria o conhecimento abolir a morte? Como conseguiria um

homem “conhecer tudo”? Ao pôr essas questões, entramos diretamente no centro

da teoria do conhecimento de Broch. A resposta de Broch nos dará alguma idéia

do seu escopo. Assim, ele responde à primeira questão da seguinte forma: de

todo o conhecimento abrangente resulta necessariamente a simultaneidade, que

abole a sucessão temporal e, por conseguinte, a morte; estabelece-se na vida

humana uma espécie de eternidade, uma imagem da eternidade. Quanto à

segunda questão, a chave para ela se encontra na frase: “O que é preciso é uma

teoria geral do empirismo”, 35 isto é, um sistema que levará em consideração

todas as experiências futuras possíveis. (“Se se pudesse realmente averiguar a

soma total de todas as potencialidades humanas, tal modelo nos proporcionaria

um esquema de todas as experiências futuras possíveis”, escreve Broch no

“Índice Preliminar” da Psicologia de massas.) Com uma tal teoria, o homem,

“por virtude do absoluto que nele opera, por virtude da lógica de seu pensamento

que a ele se impõe”, 36 assegura uma “imaginabilidade” que é “uma

imaginabilidade em si mesma”, 37 que existiria mesmo que não houvesse nenhum

Deus de quem o homem fosse a imagem. Nas palavras de Broch, seria uma

tentativa de ver se a epistemologia não poderia conseguir “chegar por trás de

Deus, por assim dizer, para dali olhá-lo”. 38 E juntos — a abolição do tempo na

simultaneidade do conhecimento e o estabelecimento de uma teoria abrangente

da experiência onde a chocante casualidade das experiências individuais e dados

empíricos é transformada na certeza e necessidade auto-evidente e axiomática (e

portanto sempre tautológica) das proposições lógicas — podem ser alcançadas

com a descoberta de um “sujeito epistemológico” que, como o sujeito científico

no campo de observação, representa “a personalidade humana em sua mais

extrema abstração”. 39 Mas, enquanto o sujeito científico no campo de

observação representa apenas o “ato em si de ver, de observar”, o “sujeito

epistemológico” seria capaz de representar todo o homem, a personalidade

humana em geral, visto que o conhecer é a mais elevada de todas as funções

humanas. 40

Antecipemos o mal-entendido mais provável. Essa teoria do conhecimento,

que logo discutiremos em maiores detalhes, não é uma filosofia em sentido

estrito, e as palavras “conhecer” e “pensar” não podem ser aqui tomadas como

equivalentes entre si, não mais do que em qualquer outro lugar. Estritamente

falando, apenas o conhecer pode ter um objetivo, seja ético, religioso ou político.

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