Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt

hernandesjuan81
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23.03.2022 Views

encara com o mesmo desdém secreto com que a filosofia acadêmica de trinta ouquarenta anos atrás encarou a experiência da morte.Dentro do seu horizonte, porém, Broch extraiu a conclusão mais ampla eradical da experiência da morte. Certamente não na teoria inicial do valor, onde amorte aparece apenas como o summum malum ou, numa antecipação do absolutoterreno, como a realidade metafísica enquanto tal: não há “nenhum fenômenoque, medido pelo seu conteúdo vital, possa ser mais afastado deste mundo e maismetafísico do que a morte”. 33 Essa conclusão radical aparece na epistemologia,segundo a qual “todo o conhecimento verdadeiro está voltado para a morte” 34 enão para o mundo, de modo que o valor do conhecimento, assim como o valorde toda a ação humana, deve ser medido pelo grau em que se presta para superara morte. Finalmente — e isso marca o último período de sua vida criativa —, elechegou à primazia absoluta do conhecimento. Já formulara esse princípio emanotações para a sua Psicologia de massas: “Aquele que consegue conhecer tudoaboliu o tempo e, portanto, também a morte”.

iii. a teoria do conhecimentoComo conseguiria o conhecimento abolir a morte? Como conseguiria umhomem “conhecer tudo”? Ao pôr essas questões, entramos diretamente no centroda teoria do conhecimento de Broch. A resposta de Broch nos dará alguma idéiado seu escopo. Assim, ele responde à primeira questão da seguinte forma: detodo o conhecimento abrangente resulta necessariamente a simultaneidade, queabole a sucessão temporal e, por conseguinte, a morte; estabelece-se na vidahumana uma espécie de eternidade, uma imagem da eternidade. Quanto àsegunda questão, a chave para ela se encontra na frase: “O que é preciso é umateoria geral do empirismo”, 35 isto é, um sistema que levará em consideraçãotodas as experiências futuras possíveis. (“Se se pudesse realmente averiguar asoma total de todas as potencialidades humanas, tal modelo nos proporcionariaum esquema de todas as experiências futuras possíveis”, escreve Broch no“Índice Preliminar” da Psicologia de massas.) Com uma tal teoria, o homem,“por virtude do absoluto que nele opera, por virtude da lógica de seu pensamentoque a ele se impõe”, 36 assegura uma “imaginabilidade” que é “umaimaginabilidade em si mesma”, 37 que existiria mesmo que não houvesse nenhumDeus de quem o homem fosse a imagem. Nas palavras de Broch, seria umatentativa de ver se a epistemologia não poderia conseguir “chegar por trás deDeus, por assim dizer, para dali olhá-lo”. 38 E juntos — a abolição do tempo nasimultaneidade do conhecimento e o estabelecimento de uma teoria abrangenteda experiência onde a chocante casualidade das experiências individuais e dadosempíricos é transformada na certeza e necessidade auto-evidente e axiomática (eportanto sempre tautológica) das proposições lógicas — podem ser alcançadascom a descoberta de um “sujeito epistemológico” que, como o sujeito científicono campo de observação, representa “a personalidade humana em sua maisextrema abstração”. 39 Mas, enquanto o sujeito científico no campo deobservação representa apenas o “ato em si de ver, de observar”, o “sujeitoepistemológico” seria capaz de representar todo o homem, a personalidadehumana em geral, visto que o conhecer é a mais elevada de todas as funçõeshumanas. 40Antecipemos o mal-entendido mais provável. Essa teoria do conhecimento,que logo discutiremos em maiores detalhes, não é uma filosofia em sentidoestrito, e as palavras “conhecer” e “pensar” não podem ser aqui tomadas comoequivalentes entre si, não mais do que em qualquer outro lugar. Estritamentefalando, apenas o conhecer pode ter um objetivo, seja ético, religioso ou político.

encara com o mesmo desdém secreto com que a filosofia acadêmica de trinta ou

quarenta anos atrás encarou a experiência da morte.

Dentro do seu horizonte, porém, Broch extraiu a conclusão mais ampla e

radical da experiência da morte. Certamente não na teoria inicial do valor, onde a

morte aparece apenas como o summum malum ou, numa antecipação do absoluto

terreno, como a realidade metafísica enquanto tal: não há “nenhum fenômeno

que, medido pelo seu conteúdo vital, possa ser mais afastado deste mundo e mais

metafísico do que a morte”. 33 Essa conclusão radical aparece na epistemologia,

segundo a qual “todo o conhecimento verdadeiro está voltado para a morte” 34 e

não para o mundo, de modo que o valor do conhecimento, assim como o valor

de toda a ação humana, deve ser medido pelo grau em que se presta para superar

a morte. Finalmente — e isso marca o último período de sua vida criativa —, ele

chegou à primazia absoluta do conhecimento. Já formulara esse princípio em

anotações para a sua Psicologia de massas: “Aquele que consegue conhecer tudo

aboliu o tempo e, portanto, também a morte”.

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