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Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt

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essa transformação das idéias em padrões e medidas para se “medir” a conduta

humana já pode se encontrar em Platão, e assim o mal-entendido, se o é, poderia

ser atribuído ao mal-entendido de Platão em relação a si mesmo. O que é crucial

é que, para Broch, a medida absoluta que se aplica a todas as “áreas de valor”, de

qualquer espécie, é sempre um padrão ético. Isso por si só explica por que, com

o desaparecimento do padrão, todas as áreas de valor se transformaram, numa

única investida violenta, em áreas de não-valor, todo o bem em mal: o padrão

absoluto e absolutamente transcendente é um absoluto ético que, sozinho,

confere “valor” à vida do homem em seus vários aspectos. E isso simplesmente

não se aplicaria a Platão, mesmo porque o conceito de ética tal como

encontramos em Broch está inseparavelmente ligado ao cristianismo.

Fiquemos com os próprios exemplos de Broch. Segundo ele, o “valor”

inerente à vocação do homem de negócios, o valor com que se mede tudo e que

seria também o único propósito da atividade comercial, é a honestidade. A

riqueza que pode surgir da atividade comercial deve ser um subproduto, um

efeito nunca pretendido enquanto tal, assim como a beleza é um subproduto para

o artista, que deveria pretender apenas a “boa”, e não a “bela” obra. Desejar a

riqueza, desejar a beleza é, moralmente falando, representar para a galeria;

esteticamente falando, é kitsch, e no sentido da teoria do valor é uma

absolutização dogmática de uma área específica. 28 Se Platão tivesse alguma vez

escolhido esse exemplo (o que não teria feito, visto que, mantendo as

concepções gregas, ele via o comércio apenas em termos de ganância e,

portanto, considerava-o como uma ocupação totalmente insensata), teria visto o

objetivo inerente da vocação como um intercâmbio de bens entre homens e

nações. A noção de honestidade provavelmente jamais lhe ocorreria nesse

contexto. Ou, invertamos o caso e escolhamos um exemplo platônico apenas

insinuado na obra de Broch. Platão define o objetivo real de toda a arte médica

como a preservação ou recuperação da saúde. Broch substituiria saúde por

auxílio. O médico como alguém preocupado com a saúde e o médico como

auxiliar — as duas concepções são incompatíveis. O próprio Platão não permite

dúvidas sobre a questão, pois explica, com se fosse uma verdade auto-evidente,

que um dos deveres do médico é permitir que morram aqueles que ele não

consegue curar, sem prolongar as vidas dos doentes por artes médicas

injustificadas. Isto é, a vida humana não tem uma importância decisiva. Os

assuntos dos homens estão subordinados a um padrão extra-humano. O homem

“não [é] a medida de todas as coisas”; ademais, a vida mesma não pode ser a

medida de todas as coisas humanas. Esses princípios se encontram no centro da

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