Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt
sobre Hofmannsthal, escrito doze anos depois, mesmo a poesia de Dante“dificilmente [pode] ser ainda caracterizada como propriamente mítica”. 22 Oensaio sobre Joyce foi escrito com a mesma disposição que irrompe tãovigorosamente dos ritmos líricos ondulantes de A morte de Virgílio e concluicom a esperança de um “novo mythos”, um “mundo se ordenando novamente”,como culminação da realização literária total dos tempos. Mas no estudo sobreHofmannsthal ouvimos apenas sobre a “ânsia de toda arte, toda grande arte [...]em poder se tornar mythos uma vez mais, representar uma vez mais a totalidadedo universo”. 23 E já essa ânsia é perigosamente próxima a uma ilusão.Esse desencantamento foi decisivo no desenvolvimento de Broch comoescritor, visto que, para ele, o próprio escrever deve ter sido indubitavelmenteuma espécie de êxtase. Mas, pondo-se de lado todo o desencantamento, elesempre soube uma coisa: nenhum poema pode se tornar a pedra fundamental deuma religião e, acima de tudo, nenhum poeta tem o direito de tentá-lo. Eis porque tinha uma consideração tão grande por Hofmannsthal (e por que as“declarações religiosas poéticas” 24 de Rilke lhe pareciam tão suspeitas, emboraevidentemente soubesse que Rilke era um poeta maior), que nunca confundiureligião e literatura, nunca envolveu a beleza com “o nimbo da religiosidade”. 25E quando, ao prosseguir e ir além de Hofmannsthal, disse que a arte “nuncaconsegue se elevar a um absoluto e, portanto, deve se manter cognitivamentemuda”, 26 estava fazendo uma afirmação que não poderia ter formulado tãoaguda e categoricamente em seus anos anteriores, mas que sempre fez parte deseu pensamento.
ii. a teoria do valorEm seu estágio mais baixo, inicial e plausível, a crítica de Broch a si mesmocomo escritor e à literatura enquanto tal começa com a crítica a l’art pour l’art.Esse foi também o ponto de partida para a sua teoria do valor. (Broch, emcontraste com os “filósofos do valor” acadêmicos, muito mais inócuos einsignificantes, estava muito ciente de dever seu conceito de valor a Nietzsche,como fica evidente a partir do único lugar em que o comenta.) 27 Para Broch, adesintegração do mundo ou a dissolução dos valores era o resultado dasecularização do Ocidente. Ao longo desse processo, perdeu-se a crença emDeus. E mais, a secularização despedaçara a visão de mundo platônica quepostulava um “valor” supremo, absoluto e portanto não terreno, o qual confere atodas as ações do homem um “valor” relativo estabelecido dentro de umahierarquia de valores. Cada fragmento remanescente da visão de mundo religiosae platônica agora reivindicava o absoluto. Assim surgiu a “anarquia de valores”,onde cada um podia passar a seu bel-prazer de um sistema fechado e coerente devalores para outro qualquer. Além disso, cada um desses sistemasnecessariamente se tornava adversário implacável de todos os outros, visto quecada um reivindicava o absoluto e não mais existia nenhum absoluto verdadeirocom que aferir aquelas reivindicações. Em outras palavras, a anarquia do mundo,e o desesperado debater-se do homem em meio a ela, deve-se basicamente àperda do padrão de medida e à resultante excessividade, um crescimento comoque canceroso das áreas que assim se tornaram independentes. Por exemplo, acausa da filosofia da arte pela arte conduz, se tiver a coragem de seguir seusprincípios até suas conclusões lógicas, à idolatria da beleza. Se calhar deconsiderarmos o belo em termos de tochas ardentes, estaremos preparados, comoNero, para atear fogo a corpos humanos.O que Broch entendia por kitsch (e quem antes dele sequer olhou a questãocom a agudeza e a profundidade que ela exige?) não era de forma alguma umasimples questão de decadência. Tampouco julgava a relação entre o kitsch e averdadeira arte comparável à relação entre a superstição e a religião numa erareligiosa, ou entre a pseudociência e a ciência na era moderna de massas. Paraele, antes, o kitsch é arte, a arte uma vez se torna kitsch tão logo rompa com osistema controlador de valores. Particularmente, l’art pour l’art, ainda queaparecendo sob um disfarce aristocrático e altivo, e nos proporcionando — comoBroch evidentemente sabia — obras literárias tão convincentes, já é realmentekitsch, assim como, no âmbito comercial, o lema “Negócio é negócio” já contém
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ii. a teoria do valor
Em seu estágio mais baixo, inicial e plausível, a crítica de Broch a si mesmo
como escritor e à literatura enquanto tal começa com a crítica a l’art pour l’art.
Esse foi também o ponto de partida para a sua teoria do valor. (Broch, em
contraste com os “filósofos do valor” acadêmicos, muito mais inócuos e
insignificantes, estava muito ciente de dever seu conceito de valor a Nietzsche,
como fica evidente a partir do único lugar em que o comenta.) 27 Para Broch, a
desintegração do mundo ou a dissolução dos valores era o resultado da
secularização do Ocidente. Ao longo desse processo, perdeu-se a crença em
Deus. E mais, a secularização despedaçara a visão de mundo platônica que
postulava um “valor” supremo, absoluto e portanto não terreno, o qual confere a
todas as ações do homem um “valor” relativo estabelecido dentro de uma
hierarquia de valores. Cada fragmento remanescente da visão de mundo religiosa
e platônica agora reivindicava o absoluto. Assim surgiu a “anarquia de valores”,
onde cada um podia passar a seu bel-prazer de um sistema fechado e coerente de
valores para outro qualquer. Além disso, cada um desses sistemas
necessariamente se tornava adversário implacável de todos os outros, visto que
cada um reivindicava o absoluto e não mais existia nenhum absoluto verdadeiro
com que aferir aquelas reivindicações. Em outras palavras, a anarquia do mundo,
e o desesperado debater-se do homem em meio a ela, deve-se basicamente à
perda do padrão de medida e à resultante excessividade, um crescimento como
que canceroso das áreas que assim se tornaram independentes. Por exemplo, a
causa da filosofia da arte pela arte conduz, se tiver a coragem de seguir seus
princípios até suas conclusões lógicas, à idolatria da beleza. Se calhar de
considerarmos o belo em termos de tochas ardentes, estaremos preparados, como
Nero, para atear fogo a corpos humanos.
O que Broch entendia por kitsch (e quem antes dele sequer olhou a questão
com a agudeza e a profundidade que ela exige?) não era de forma alguma uma
simples questão de decadência. Tampouco julgava a relação entre o kitsch e a
verdadeira arte comparável à relação entre a superstição e a religião numa era
religiosa, ou entre a pseudociência e a ciência na era moderna de massas. Para
ele, antes, o kitsch é arte, a arte uma vez se torna kitsch tão logo rompa com o
sistema controlador de valores. Particularmente, l’art pour l’art, ainda que
aparecendo sob um disfarce aristocrático e altivo, e nos proporcionando — como
Broch evidentemente sabia — obras literárias tão convincentes, já é realmente
kitsch, assim como, no âmbito comercial, o lema “Negócio é negócio” já contém