23.03.2022 Views

Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

dele mesmo, mas que ninguém o fez: “Ele alcançou o ponto do Ou-Ou: ou a

poesia é capaz de prosseguir até o mito, ou vai à falência. Kafka, em seu

pressentimento da nova cosmogonia, a nova teogonia que teria de realizar,

lutando contra seu amor pela literatura, sua aversão pela literatura, sentindo a

insuficiência última de qualquer aproximação artística, decidiu (como Tolstói,

perante uma decisão semelhante) abandonar o âmbito da literatura e pediu que

sua obra fosse destruída; pediu-o para o bem do universo cujo novo conceito

mítico fora confiado a ele” 15 (grifos meus).

O que Broch diz nesse ensaio vai muito além do ódio à pose literária e seu

esteticismo barato, e mesmo além de sua crítica exacerbada a l’art pour l’art,

que ocupa um papel central em sua obra crítica tópica, bem como seu filosofar

sobre a arte e suas primeiras reflexões sobre a ética e a teoria do valor. As obras

de arte enquanto tais são tidas como questionáveis. A literatura como tal é “ao

final insuficiente”. Uma perturbadora espécie de reticência, que não se deve

equiparar a uma modéstia, impediu-o de propor sua própria obra como modelo

daquilo de que falava; mas é claro que ali se referia a A morte de Virgílio da

mesma forma como dez anos antes, no ensaio sobre Joyce, ocultara sua crítica a

Os sonâmbulos por trás de uma observação sobre Gide, quanto ao resultado de

dificilmente se atingir a modernidade quando “se usa uma novela como quadro

para digressões psicanalíticas ou de outras áreas científicas”. 16 Mas aí, nos

primeiros ensaios e também em sua primeira autocrítica, ele estava interessado

apenas em liberar a novela de sua “literariedade”, sua sujeição à sociedade

burguesa cujo lazer e avidez pela cultura tinham de ser alimentados com

“entretenimento e instrução”. 17 Ele indubitavelmente conseguiu, em A morte de

Virgílio, transformar a forma da novela, apesar de suas tendências

intrinsecamente especiosas ou naturalistas, em poesia autêntica — e, portanto,

com esse exemplo demonstrou a insuficiência da poesia enquanto tal.

A menção a Tolstói sugere por que Broch julgava a literatura insuficiente. A

literatura não impõe nenhum édito obrigatório. Suas percepções não têm o

caráter forçoso do mythos a que ela serve numa visão religiosa intacta do mundo

— sendo esse serviço a justificação real da arte. (Para Broch, o grande protótipo

e exemplo de tal serviço sempre foi o sistema hierarquicamente ordenado de

vida e pensamento que predominou durante a Idade Média católica.) E a arte, em

especial a literatura, tampouco possui a força coercitiva, a incontrovertibilidade,

das proposições lógicas; embora se manifeste na linguagem, ela carece da

irrefutabilidade do logos. Broch provavelmente se deparou pela primeira vez

com a questão “O que faremos então?” em relação à Primeira Guerra Mundial.

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!