Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt
tornaram-se evidentes na atitude de Broch em relação ao fato de ser um poeta;converteu-se num, à sua revelia, e com sua relutância deu expressãopessoalmente válida e adequada tanto ao traço fundamental de sua naturezacomo ao conflito fundamental de sua vida.Em termos da biografia de Broch, a expressão “poeta relutante”, na medida emque expressa um conflito, provavelmente se aplica de modo primário ao períodoposterior a A morte de Virgílio. Nesse livro, o caráter dúbio da arte em geral seconverteu no conteúdo temático de uma obra de arte em si; e como a conclusãoda obra coincidiu com o maior impacto da época, a revolução dos massacres noscampos de extermínio, Broch desde então se proibiu prosseguir com textoscriativos, e assim se separou de seu modo habitual de resolver todos os conflitos.Em relação à vida, ele concedeu primazia absoluta à ação, e em relação àcriatividade, ao conhecimento. Assim, a tensão entre literatura, conhecimento eação o assediava diariamente, quase todas as horas, afetando permanentementesua vida cotidiana e seu trabalho diário. (Voltaremos à base objetiva dessatensão, que brotava da concepção de Broch sobre a ação em termos de umtrabalho orientado para objetivos, e sobre o pensamento em termos de umconhecimento produtor de resultados.)Isso teve certas conseqüências práticas notáveis. Sempre que um conhecido —não só um amigo, o que manteria as coisas dentro de limites razoáveis, masqualquer conhecido — estava em dificuldades, doente, sem dinheiro ou à morte,era Broch quem cuidava de tudo. (E as dificuldades, evidentemente, eramubíquas num círculo de amigos e conhecidos constituído em grande parte derefugiados.) Parecia implícito que todo auxílio viria de Broch, que não tinhadinheiro nem tempo. Só ficava isento de tais responsabilidades — queinevitavelmente ampliavam seu círculo de conhecidos, assim impondo novasexigências ao seu tempo — quando ele próprio ia para o hospital (não sem umapitada de alegria malévola) e lá conseguia um pouco de descanso, que não sepode muito negar a um braço ou a uma perna quebrada.Mas é claro que essa foi apenas a fase mais inocente do conflito quedeterminou sua vida nos Estados Unidos. Incomparavelmente mais pesado paraele era o fato de que seu passado como poeta e novelista arrastava-se atrás de si,e, como de fato ele era um poeta, não poderia escapar a essa obrigação. Issocomeçou com Die Schuldlosen [O inocente], que teve de ser escrito quando umeditor alemão, após a guerra, quis republicar na forma original algumas velhashistórias semi-esquecidas de Broch. Para impedi-lo, ele escreveu o livro, isto é,revisou as histórias até se adequarem à narrativa “estrutural”, e acrescentou
algumas novas histórias, incluindo a da empregada Zerline, talvez a mais belahistória de amor da literatura alemã. Tornou-se sem dúvida um livro muitobonito, mas dificilmente foi escrito de livre e espontânea vontade.A novela em que estava trabalhando na época de sua morte pertence a essamesma categoria. Ela agora figura em suas obras reunidas sob o título DerVersucher [O tentador]. 3 Nesse caso, Alfred A. Knopf quis publicar um livro deBroch, o que este não poderia recusar, mesmo porque precisava de dinheiro.Sabia-se muito bem que ele trouxera consigo da Áustria uma novelapraticamente concluída e a guardara na gaveta de sua escrivaninha. Precisavaapenas entregar o manuscrito para o editor americano, para a tradução. Mas, aoinvés disso, entregou-se à tarefa de revisá-la pela terceira vez — e, na ocasião,fez algo que, provavelmente, é único na história da literatura. A novela pertenciaa uma época totalmente diferente de sua vida — saíra daquele que foiprovavelmente seu período mais confuso, os primeiros anos do hitlerismo. Seuconteúdo, sob muitíssimos aspectos, se tornara estranho a ele. Mas remodelou-osegundo o mesmo “estilo da era antiga” que descrevera e aclamara em seuensaio sobre “O estilo da era mítica”. 4 Se comparamos as duzentas páginasdatilografadas da última versão com os capítulos da segunda versão de ondeprovieram, vemos que seu trabalho consistiu apenas em supressões, em outraspalavras, naquele processo de “abstração” característico do estilo da era antiga.Essa abstração resultou numa prosa enxuta e purificada de beleza e vitalidadeintocáveis, e num entrelaçamento perfeito do homem com a paisagem, sob umaforma que, caso contrário, só temos com os velhos mestres — mestres queenvelheceram. Certamente não precisamos das suas últimas obras literáriasinacabadas para compreender que Broch nunca deixou de ser poeta e novelista,por menos que, cada vez mais, quisesse sê-lo. Cada um de seus ensaiospublicados é essencialmente a declaração de um escritor. Isso é particularmenteverdadeiro em relação ao estudo sobre Hofmannsthal, aquele magnífico ensaio,repleto de incursões históricas, onde Broch lidou com todas as premissas de suaprópria existência literária: origem judaica e assimilação, os esplendores emisérias da Áustria decadente, o respeitável ambiente de classe média que lheera tão detestável, e o ainda mais detestável exclusivismo de Viena, essa“metrópole do vácuo ético”. 5 Todas as suas grandes percepções históricas: acoordenação entre o barroco e o drama, sua análise do teatro como o últimorefúgio do grande estilo numa época sem estilo; 6 a descoberta de que é “umanovidade na história da arte que a fama póstuma tenha se tornado maisimportante que a fama” e a relação desse fenômeno com a era burguesa; 7
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algumas novas histórias, incluindo a da empregada Zerline, talvez a mais bela
história de amor da literatura alemã. Tornou-se sem dúvida um livro muito
bonito, mas dificilmente foi escrito de livre e espontânea vontade.
A novela em que estava trabalhando na época de sua morte pertence a essa
mesma categoria. Ela agora figura em suas obras reunidas sob o título Der
Versucher [O tentador]. 3 Nesse caso, Alfred A. Knopf quis publicar um livro de
Broch, o que este não poderia recusar, mesmo porque precisava de dinheiro.
Sabia-se muito bem que ele trouxera consigo da Áustria uma novela
praticamente concluída e a guardara na gaveta de sua escrivaninha. Precisava
apenas entregar o manuscrito para o editor americano, para a tradução. Mas, ao
invés disso, entregou-se à tarefa de revisá-la pela terceira vez — e, na ocasião,
fez algo que, provavelmente, é único na história da literatura. A novela pertencia
a uma época totalmente diferente de sua vida — saíra daquele que foi
provavelmente seu período mais confuso, os primeiros anos do hitlerismo. Seu
conteúdo, sob muitíssimos aspectos, se tornara estranho a ele. Mas remodelou-o
segundo o mesmo “estilo da era antiga” que descrevera e aclamara em seu
ensaio sobre “O estilo da era mítica”. 4 Se comparamos as duzentas páginas
datilografadas da última versão com os capítulos da segunda versão de onde
provieram, vemos que seu trabalho consistiu apenas em supressões, em outras
palavras, naquele processo de “abstração” característico do estilo da era antiga.
Essa abstração resultou numa prosa enxuta e purificada de beleza e vitalidade
intocáveis, e num entrelaçamento perfeito do homem com a paisagem, sob uma
forma que, caso contrário, só temos com os velhos mestres — mestres que
envelheceram. Certamente não precisamos das suas últimas obras literárias
inacabadas para compreender que Broch nunca deixou de ser poeta e novelista,
por menos que, cada vez mais, quisesse sê-lo. Cada um de seus ensaios
publicados é essencialmente a declaração de um escritor. Isso é particularmente
verdadeiro em relação ao estudo sobre Hofmannsthal, aquele magnífico ensaio,
repleto de incursões históricas, onde Broch lidou com todas as premissas de sua
própria existência literária: origem judaica e assimilação, os esplendores e
misérias da Áustria decadente, o respeitável ambiente de classe média que lhe
era tão detestável, e o ainda mais detestável exclusivismo de Viena, essa
“metrópole do vácuo ético”. 5 Todas as suas grandes percepções históricas: a
coordenação entre o barroco e o drama, sua análise do teatro como o último
refúgio do grande estilo numa época sem estilo; 6 a descoberta de que é “uma
novidade na história da arte que a fama póstuma tenha se tornado mais
importante que a fama” e a relação desse fenômeno com a era burguesa; 7