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i. o poeta relutante
Hermann Broch foi um poeta à sua própria revelia. Ter nascido poeta e não
querer sê-lo foi o traço fundamental de sua natureza, inspirou a ação dramática
de seu maior livro e tornou-se o conflito básico de sua vida. De sua vida, não de
sua psique; pois não era um conflito psicológico que pudesse se expressar em
lutas psíquicas, sem outras conseqüências além do que o próprio Broch chamou,
em parte com ironia, em parte com aversão, de “clamor da alma”. Nem era um
conflito entre dons — entre, digamos, o dom para as ciências e a matemática e o
dom imaginativo e poético. Tal conflito poderia ser solucionado, ou, se fosse
insolúvel, poderia no máximo ter produzido belles-lettres, mas jamais uma obra
criativa real. Além disso, um conflito psicológico ou uma luta entre vários
talentos nunca pode constituir o traço fundamental da natureza de um homem,
visto que esta sempre reside num nível mais profundo, por assim dizer, do que
todos os dons e talentos, do que todas as particularidades e qualidades passíveis
de descrição psicológica. Estas brotam de sua natureza, desenvolvem-se segundo
suas leis ou são por ela destruídas. O circuito da vida e da criatividade de Broch,
o horizonte onde se movia sua obra, não era realmente um círculo; parecia-se
antes com um triângulo cujos lados podem ser precisamente rotulados: Literatura
— Conhecimento — Ação. Apenas esse homem, no que tem de único, poderia
preencher a área do triângulo.
Atribuímos talentos inteiramente diferentes a essas três atividades
fundamentalmente diversas dos homens: o trabalho artístico, o científico e o
político. Mas Broch abordou o mundo com a exigência, nunca formulada de
modo totalmente aberto, mas sempre latente e persistente, de que, em sua vida na
terra, o homem deve fazer com que as três coincidam e se tornem uma única
atividade. Ele exigia da literatura que tivesse a mesma validade obrigatória da
ciência, que a ciência se concentrasse em ser a “totalidade do mundo”, 1 como o
faz a obra de arte, cuja “tarefa é a recriação constante do mundo”, 2 e que ambas
em conjunto, a arte impregnada pelo conhecimento e o conhecimento que
adquiriu visão, pudessem abranger e incluir todas as atividades práticas
cotidianas do homem.
Esse foi o traço fundamental de sua natureza, e, como tal, sem conflito. Mas
dentro de uma vida, e sobretudo dentro da extensão limitada que é doada à vida
humana, uma tal exigência deve necessariamente conduzir a conflitos. Pois,
dentro da estrutura das atitudes e ocupações contemporâneas, ela põe um peso
excessivo sobre a arte, sobre a ciência e sobre a política. E esses conflitos