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Homens Em Tempos Sombrios - Hannah Arendt

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fazer com que o sonho de uma outra pessoa se torne verdadeiro. (Assim, ela

mesma pensara que podia se casar sem amor porque seu primo “precisava dela e

foi talvez o único ser humano a senti-lo”, embora ela realmente o tenha usado

para começar uma vida nova na África Oriental e viver entre nativos, tal como

fizera seu pai, quando viveu como ermitão entre os índios Chippeway. “Os

índios são melhores que nosso povo civilizado da Europa”, dissera ele à filhinha,

cujo grande dom era o de nunca esquecer. “Seus olhos vêem mais que os nossos,

e são mais sábios.”)

Assim, a pane inicial de sua vida lhe ensinara que, embora se possam contar

histórias ou escrever poemas sobre a vida, não se pode tornar a vida poética,

vivendo-a como se fosse uma obra de arte (como fez Goethe) ou utilizando-a

para a realização de uma “idéia”. A vida pode conter a “essência” (o que mais

poderia?); a coleta, a repetição na imaginação, podem decifrar a essência e

oferecer-lhe o “elixir”; e finalmente até se pode ser um privilegiado capaz de

“fazer” algo com isso, “compor a história”. Mas a vida em si não é essência nem

elixir e, se se a trata como tal, ela só pregará peças. Foi talvez a amarga

experiência das peças da vida que a preparou (um tanto tarde, pois estava nos

meados de sua trintena quando encontrou Finch-Hatton) para ser tomada pela

grande passion que realmente é tão rara como um chef-d’œuvre. De qualquer

forma, foi o contar histórias que ao final a fez sábia — e, de passagem, não uma

“feiticeira”, “sereia” ou “sibila”, como julgavam com admiração os que a

cercavam. A sabedoria é uma virtude da velhice, e parece vir apenas para os que,

quando jovens, não eram nem sábios nem prudentes.

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