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BONA FIDES Edição de Dezembro

Eis a reedição da Revista do Núcleo de Estudantes Católicos da FDUL! Retomámos no ano de 2021 uma iniciativa de colegas que nos precederam para ajudar a construir o Reino de Deus, na nossa Faculdade. Queremos uma revista que espelhe e divulgue o pensamento da Igreja Católica sobre temas que são caros no nosso âmbito académico, que possa chegar a todos e ser de todos. Agradecemos muitíssimo a todos os que colaboraram ativamente no projeto e a todos os leitores (ao que parece já somos muitos!) Queremos ainda publicar um pedido de desculpas aos nossos autores e leitores: notámos que a revista tem algumas gralhas. Estas são da exclusiva responsabilidade da edição – os autores são completamente alheios a este fenómeno.

Eis a reedição da Revista do Núcleo de Estudantes Católicos da FDUL!
Retomámos no ano de 2021 uma iniciativa de colegas que nos precederam para ajudar a construir o Reino de Deus, na nossa Faculdade. Queremos uma revista que espelhe e divulgue o pensamento da Igreja Católica sobre temas que são caros no nosso âmbito académico, que possa chegar a todos e ser de todos.
Agradecemos muitíssimo a todos os que colaboraram ativamente no projeto e a todos os leitores (ao que parece já somos muitos!)
Queremos ainda publicar um pedido de desculpas aos nossos autores e leitores: notámos que a revista tem algumas gralhas. Estas são da exclusiva responsabilidade da edição – os autores são completamente alheios a este fenómeno.

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DE VOLTA, COM O

TEMA “JUSTIÇA SOCIAL”

1ª EDIÇÃO

DEZEMBRO 2021 | BONA FIDES | 1


BONA FIDES DE

VOLTA!

Bem-vindos à primeira

edição deste ano da Bona

Fides, a revista do NEC –

Núcleo de Estudantes

Católicos da Faculdade de

Direito da Universidade de

Lisboa.

Criada há muitos anos com a

vontade de dar visibilidade ao

olhar católico na sociedade, o seu

relançamento é para todos nós uma

grande alegria, e acima de tudo,

uma oportunidade para o NEC de

levar a sua missão mais longe.

De facto, Deus convida­nos a viver

com Ele a nossa vida inteira, a

procurá­Lo em todos os segundos

do nosso dia, no mundo à nossa

volta e nas pessoas que nos

rodeiam. É por isso que o NEC

existe: para que, até na faculdade,

no nosso estudo, nos nossos

amigos, haja espaço para O

encontrarmos. Nesse sentido, a

Bona Fides é mais um

instrumento de fé vivida em

comunidade, mas também de

abertura aos outros: com esta

revista, queremos criar a

oprtunidade de partilhar ideias,

experiências e conhecimentos que

nos ajudem a ser melhores cristãos

e membros ativos na construção de

um mundo mais à imagem de

Cristo. Nesse sentido, ao longo do

ano letivo presente, a Bona Fides

irá centrar­se principalmente no

tema da justiça, abordando­o de

forma diferente em cada uma das

suas edições. Para tal, convidámos

alunos, professores e padres para

que, através de artigos de opinião,

de debates ou propostas de oração,

semeassem em cada um uma

semente de curiosidade e de

reflexão, tão importantes para que

consigamos ser nós também

instrumentos do Pai no nosso dia a

dia.

E é assim que apresentamos com

muito orgulho esta primeira

edição, debruçada sobre a justiça

social: com a ajuda de tantos,

criámos uma revista de conteúdo

variado e que tem o potencial de

chegar a todos, com a enorme

vontade de reforçar a comunidade

do NEC e de a fazer crescer.

Deixamos por isso o nosso sincero

agradecimento a cada uma das

pessoas que contribuiu para que tal

fosse possível ­ em especial, aos

nossos responsáveis da pasta da

cultura, Alice Correia Pires e Zé

Abranches Pinto, que levaram a

cabo esta missão com tanta alegria

e sentido de serviço!

Por fim, deixamos a cada um o

convite a virem conhecer o NEC, a

envolverem­se nas suas iniciativas

e a criar amizades no seu seio:

sabemos que viver a fé em

comunidade é muito importante, e

queremos que a faculdade seja

efetivamente um lugar onde

possamos todos ser Igreja em

conjunto! Deixemos­nos contagiar

pelo Espírito Santo e a sua Alegria!

Desejamos a todos uma

ótima leitura e um Santo

Natal!

DUARTE CODINHA E

LEONOR BARRETO

(PRESIDENTE E

VICEPRESIDENTE DO

NEC)

PADRE BERNARIDO

ARANHA: O

ADVENTO DO

DIREITO

O que faz o anúncio de Advento

numa revista de estudantes de

direito? O que se espera, melhor,

quem se espera no Advento e que

diferença faz para o nosso vaivém

sobrecarregado de pesados e

solenes manuais de profunda

ciência jurídica? Talvez nos

tenhamos habituado a dissociar

apressadamente a fé e a vida, de tal

modo que até estas simples

interrogações nos pareçam

estranhas, vazias. Entre o Advento

e o direito há um abismo

ininteligível.

No Advento espera-se um

nascimento: o nascimento do Filho

de Deus e da Virgem Maria. É, para

dizer de algum modo, o nascimento

perfeito. Tudo vem do Alto, nada é

obra dos homens. O Filho eterno de

Deus - nascido na eternidade -

nasce como homem sem

intervenção de varão. À luz deste

mistério percebemos uma verdade

profunda. A vida - a nossa vida de

homens - não é fruto do nosso

engenho, nem iniciativa da nossa

autonomia. É puro dom. Que o

filho de Deus queira ter nascido de

uma virgem, segundo a Sua

humanidade, não resulta de um

qualquer repúdio da união entre o

homem e a mulher, de uma

qualquer desconfiança em relação

à carne. Pelo contrário, neste

nascimento aparece a exuberante

dignidade da natureza humana,

cuja origem é o próprio Deus. O

homem não é um acaso, uma

escolha humana ou um dado

cultural. A sua raiz é transcendente

DEZEMBRO 2021 | BONA FIDES | 2


e a sua dignidade intangível. Por

isso, o homem é um estudante de

direito. Cabe-lhe procurar o modo

recto e justo de viver. Viver diante

dos seus semelhantes não é para ele

pura espontaneidade instintiva, é

uma busca. Daí a pergunta pela

justiça, pelo recto modo de

conviver, e a ingente distinção

entre o bem e o mal.

O que nos sucederia se não

esperássemos uma resposta sobre a

vida? Se a vida fosse um enigma

insolúvel e não um mistério? Nada

mais poderíamos esperar do que

as provisórias respostas de

uma época, de um tempo

irremediavelmente temporal.

Ficaríamos reféns do jogo de

espelhos das culturas e dos

poderes; os livros seriam, na

verdade, “papéis pintados com

tinta”. Sem a esperança do

Advento, a justiça seria uma

quimera ou uma utopia.

O que tem, então, o Advento a ver

com o direito? Tem que sem a

esperança da Verdade, os teus

manuais não têm realmente autor,

são anónimos e inconsequentes.

Talvez te pareça estranho ou

descabido, mas o anúncio de

Advento que te

faço é que sem o

nascimento de

Jesus não estudas

direito.

Limitas-te a

discorrer no

vazio.

Bom

Natal e

bom

estudo!

PROFESSOR

CATEDRÁTICO

PAULO OTERO:

“SER CATÓLICO NA

COMUNIDADE DA

FACULDADE DE

DIREITO DE

LISBOA”

“Deus não nos quer heróis,

mas santos ou, no limite,

quer­nos heróis na

santidade.”

Uma das exigências de se ser

católico é a unidade de vida: não se

pode ser católico apenas dentro da

igreja, junto da família ou no

interior da nossa residência,

deixando de o ser no local de

trabalho, de estudo ou, em geral, no

âmbito das relações sociais.

O católico tem até a responsabilidade,

especialmente perante

quem não tem crença religiosa, de

dar testemunho, através da

coerência de sua vida com a fé que

professa, pois poderá ser, por essa

via, o único referencial religioso

que tais pessoas conhecem durante

a vida: essa coerência de vida com

a fé é, cada vez mais, a melhor

forma de ser apóstolo e de levar aos

outros, por via prática e concreta do

exemplo de vida, o Evangelho.

Deste modo, ser católico na

Faculdade de Direito de Lisboa não

é (não pode ser) diferente de ser

católico em qualquer outro lugar:

está em causa a mencionada

coerência de vida entre a fé que se

professa e a conduta prática do dia

a dia. A santificação a que todos

somos chamados não exige, por via

de regra, grandes atos heroicos,

antes se alcança na realização das

simples rotinas diárias junto da

família, dos amigos e no trabalho –

Deus não nos quer heróis, mas

santos ou, no limite, quer­nos

heróis na santidade. O caminho

para a santidade no convívio com

os outros e, por isso, no contexto de

uma relação entre colegas ou entre

discentes e funcionários de uma

instituição de ensino, exige ter

presente quatro postulados

essenciais:

A) Todos somos iguais perante

Deus – resulta daqui a humildade

de reconhecer que ninguém tem o

monopólio da verdade e,

simultaneamente, uma postura de

respeito, tolerância e urbanidade

para quem, exercendo

legitimamente a sua liberdade de

ensinar ou de aprender, pensa

diferente;

B) Cada um é “guarda do seu

irmão” – expressão de uma postura

de solidariedade face a todos

aqueles que, por diversas razões,

carecem de ajuda; uma palavra

certa, um sorriso ou incentivo

podem fazer toda a diferença – e

nós, os católicos, temos que marcar

a diferença;

C) Sabermos que somos filhos de

Deus – a certeza de que nada, nem

ninguém nos pode afastar de Deus

confere­nos uma alegria e uma

esperança transcendentais, motivo

pelo qual um católico triste é

sempre um triste católico,

criando­nos a obrigação de

comunicar a alegria e a esperança a

todos aqueles com quem nos

cruzamos.

DEZEMBRO 2021 | BONA FIDES | 3


D) Não dialogar com o mal – não

se pode perder tempo, nem

alimentar pelo diálogo o mal, nem

ser dele cúmplice na prática de

injustiças, antes se impõe uma

regra de distância, de modo a não

nos deixarmos conspurcar ou

contaminar – a sedução pelo poder

(incluindo nas instituições

universitárias…), sem um

propósito de prosseguir o bem

comum, é uma das maiores

tentações do inimigo.

PROFESSOR

DOUTOR

FRANCISCO

MENDES

CORREIA:

WHAT’S WRONG

WITH THE

WORLD?

Foi-me colocada a questão: Se a

justiça é a constante e

perpétua vontade de dar a

cada um aquilo que é seu, o

que é que devo dar à

sociedade? E foi-me atribuído

um encargo: glosar (a propósito

desta questão) as páginas do

What’s Wrong with the World? 1 , de

G.K. Chesterton. Como sou

obediente, segue-se o resultado.

Logo no capítulo de abertura deste

livro (The Medical Mistake),

Chesterton começa com um

diagnóstico metodológico: não se

podem discutir os males da

sociedade, e os possíveis remédios

para os contrariar, sem antes se

debater sobre a natureza humana, e

se alcançar um consenso mínimo

sobre o verdadeiro fundamento da

dignidade do homem. Na

medicina, continua Chesterton, o

problema não existe, porque os

médicos concordam com o que

constitui um corpo saudável.

Podem estar em desacordo quanto

ao diagnóstico – qual a doença do

paciente? -, ou quanto à terapêutica

– o que fazer? -, mas todos têm a

mesma ideia do que representaria a

sua saúde. Nas discussões

filosóficas, sociológicas e culturais

actuais, porém, não há um

consenso equiparável: além das

discussões quanto aos

remédios, há ainda

dissenso quanto ao

resultado que se quer

produzir. Além de

discutirmos os

problemas sociais,

não estamos de

acordo quanto ao

ideal social a

atingir. atingir.

Nos debates sobre a Justiça e o

Direito, este problema,

identificado certeiramente – como

sempre -, por Chesterton, sente-se

com especial intensidade. Todos

afirmam que o homem tem direitos

fundamentais, simultaneamente

exigências da sua dignidade e

condições mínimas para que

floresça. Mas poucos estão de

acordo quanto ao fundamento

dessa dignidade, ou quanto ao que

constitui o florescimento do

homem.

Na tradição do pensamento

católico, a dignidade do homem

reside na Imago Dei. Fomos

criados por amor, à imagem de

Deus, chamados a partilhar, pelo

conhecimento e pelo amor, a vida

de Deus. O homem tem assim uma

natureza, um certo modo de ser,

que lhe foi oferecido, e que não

depende de qualquer ato de

consciência (do próprio) ou de

reconhecimento (dos demais).

Nada mais distante da famosa

passagem de Anthony Kennedy

(Juiz do Supremo Tribunal dos

Estados Unidos), característica de

um certo modo de pensar, na

modernidade: “At the heart of

liberty is the right to define

one’s own concept of

existence, of meaning, of the

universe, and of the mistery of

human life”

Este dissenso quanto ao

fundamento da dignidade do

homem e quanto ao seu

florescimento, pode ser atribuído,

paradoxalmente, a alguns pensadores

católicos. Numa página A4

não cabem todos, e por isso, na

berlinda, hoje, ficará Guilherme de

Ockham.

Em São Tomás de Aquino, a

Justiça é um atributo de Deus.

Quando falamos de Justiça Divina,

referimo-nos, sobretudo, à razão de

1

A edição portuguesa - “Disparates

do Mundo” - é a da Alêtheia, de

2013.

DEZEMBRO 2021 | BONA FIDES | 4


Deus, à sabedoria com que ordena

todas as coisas para ele próprio. A

razão de Deus funciona como se

fosse uma lei: Deus só quer aquilo

que é justo 2 . E nas relações

humanas, a razão mantém este

aspeto constitutivo: a justiça é uma

ordenação, conforme à razão, para

o bem comum, assumida uma

determinada natureza do homem.

Mas em Ockham a Justiça passa a

ser, sobretudo, uma medida da

vontade de Deus. Inquieto com os

limites que a razão recta e justa de

Deus imporia à sua omnipotência,

Ockham vai ao ponto de afirmar

que Deus poderia transformar em

justos - por mero acto da sua

vontade -, actos injustos como

odiar ou roubar alguém.

Na sociedade secularizada de hoje,

não se aceita que a justiça seja uma

expressão da razão (ou da

vontade!) de Deus. Mas persiste a

ideia voluntarista de Ockham: é

justo aquilo que o legislador assim

determinar. E, com a afirmação

exacerbada do indivíduo, foi-se

perdendo a orientação da justiça a

um bem comum, determinado em

conformidade com a razão. É cada

homem que define o que é justo,

independentemente de uma

ordenação à sua natureza ou ao seu

fim, ou ao bem das várias

comunidades em que se inscreve

(família, vizinhança, cidade,

Estado). Será justo, porque é o que

o homem quer.

É, pois, actual o diagnóstico de

Chesterton: discutimos remédios

para as injustiças, sem estarmos de

acordo com o que é justo e

conforme à natureza do homem.

Para uns, por exemplo, a eutanásia

é um acto justo

porque afirma a soberania da

vontade individual. Para outros, é

injusto, porque desconsidera a

natureza vulnerável do homem e se

opõe à sua dignidade.

Ao aceitarmos uma ideia de justiça

como manifestação da vontade

individual, condenamo-

-nos a um dissenso perigoso:

valerão as vontades dos mais fortes

ou aquelas que sejam expressas de

forma mais ameaçadora.

Também por isso, é urgente

voltarmos a conversar sobre a

natureza do homem, e sobre o

significa o seu florescimento, que

dá sentido ao Direito. E, para esse

debate, é urgente reabilitar São

Tomás de Aquino.

PROFESSOR

CATEDRÁTICO

JOSÉ PEDRO

SERRA:

DE CORAÇÃO

ABERTO NA

INCERTEZA DE

AGIR JUSTAMENTE

Indissociável da Boa Nova

evangélica, essencialmente

sustentada no Amor de Deus

presente na Revelação, mais

especificamente, na gratuita dádiva

da Encarnação, da Paixão, da Morte

e da Ressurreição do Filho de Deus,

fácil é compreender que da

doutrina cristã emerge um

conjunto de exigências éticas

que não podem ser

enfraquecidas e domesticadas

e ainda menos esquecidas. A Fé

na Palavra de Deus, a esperança no

cumprimento da Promessa que aí

habita e que revela não apenas o

plano salvífico de Deus para os

homens mas também a vocação

destes para a comunhão plena com

Deus, modelam e determinam o

perfil da acção, a natureza da

relação com o outro, entendido

como pessoa, como entidade

existencial e espiritualmente

autónoma. Para o cristão, a acção

recta e justa, boa, floresce dentro

deste horizonte e é por ele

iluminada. Não seria difícil

encontrar exemplos empíricos ou

literários que testemunham esta

atitude de amor ao próximo e a

Deus (de resto, indissociáveis),

expressas na renúncia a egoísmos e

a prepotências de qualquer espécie

e que por isso mesmo se enquadram

na demanda do agir justo.

Acontece, porém, que a aceitação

destes virtuosos princípios de

conduta que se enraízam na

mensagem evangélica (a bondade, a

solidariedade, o respeito pelo

outro…) e cuja intencionalidade é a

acção amorosamente justa, talvez

pela evidência da sua própria

legitimidade, acabam por servir

apenas como bengala moral, como

segurança na aparente certeza com

que são aceites, como validação

exterior e descarnada de um

impensado agir que se supõe justo e

bom. Os gestos, certeiros ou

desviados, generosos ou falsamente

2

Summa Theologica, I, q. 21, a. 1, ad

DEZEMBRO 2021 | BONA FIDES | 5


bondosos, “justos” ou “injustos”,

transformam-se assim em

mecanizados actos, cascas ocas

destituídas de verdade interior. É

por isso que em lugar de anunciar o

que devo justamente dar à

sociedade me interessa reflectir

sobre a natureza incerta e

inquietante da doação justa e boa.

Ficção onde se cruzam crime,

luxúria, vingança, arrependimento

e santidade. Os Irmãos Karamazov

apresenta-nos não as receitas de um

agir justo, não a prévia certeza de

agir justamente, mas a ferida aberta,

vivida e experimentada, na

consciência daquele que procura a

justiça do seu gesto na inquieta

demanda pela coincidência dos seus

actos com a verdade, com os

princípios primeiros da realidade. É

no confronto entre as ideias de Ivan

Karamazov e do seu irmão Aliocha

que Dostoievski coloca o cerne da

reflexão. Ivan é o indeciso arauto da

grande nova do séc. XIX, Deus

morreu (é essa a palavra de

Nietzsche), formulada na sua boca

nestes termos: “Se Deus morreu,

então tudo é permitido.” Ivan não é

o sossegado ateu perante quem

todas as dúvidas se dissolveram em

acabrunhantes e empobrecidas

“certezas”. Ele está dividido entre a

proposta das soluções meramente

terrenas para o desejo de Absoluto

da alma e a incompreensão perante

um Deus oculto, que se mantém

longe e em silêncio, consentindo no

sofrimento dos inocentes, das

crianças, situação com a qual não

pode conciliar-se. Nesse sentido, a

sua atitude representa o modelo do

homem revoltado. Aliocha é aquele

que se sente tocado pela graça de

Deus, aquele para quem o mistério

do Amor de Deus se foi revelando

no convívio com um homem santo.

Mas ele não pretende saber

responder às perguntas do irmão,

cujo sofrimento reconhece enorme.

A sua atitude parte de uma outra

visão interior, de uma outra

vivência, de um outro experimentado

saber e sabor. Ambos

querem agir justamente, ambos

estão dispostos a dar-se

amorosamente na acção. Mais do

que explicadas, as suas diferenças

mostram-se. E nessa presença

abismal é o leitor convidado a

encontrar a verdade recôndita da

justiça do seu agir. Mas sem “livro

de instruções”, apenas na

intimidade da sua decisão.

O que “devo” dar eu à sociedade ou

ao outro, meu cúmplice e parceiro?

Para um cristão talvez apenas um

coração aberto e uma inteligência

vigilante para que no gesto e na

palavra possa ao menos ecoar o

desejo da Verdade. É pouco, e não

é uma receita de aplicação

mecânica e imediata, e contudo

parece-me imenso.

PROFESSOR DOUTOR

FRANCISCO MALTA

ROMEIRAS:

“AS SETE OBRAS DE

MISERICÓRDIA”

Dar a cada um aquilo que é seu é,

talvez, um dos principais axiomas

do Cristianismo. Alguns dos

principais direitos consagrados no

mundo ocidental partiram de um

olhar positivo sobre o homem e a

fragilidade humana. No seu relato

do Juízo Final, Mateus apresenta as

obras de misericórdia espirituais

como critério para distinguir os

homens justos dos malditos (Mt 25,

31–36). Uma das representações

mais belas e emblemáticas das

obras de misericórdia é,

possivelmente, uma tela do mestre

do chiaroscuro, Michelangelo

Caravaggio.

Em 1606–1607, uma confraria de

nobres napolitana encomendou a

Caravaggio (1571–1610) uma tela

para o altarmor da sua igreja.

Pintada provavelmente entre

Setembro de 1606 e Janeiro de

1607, a tela representava as sete

obras de misericórdia corporais: 1.

Dar de comer a quem tem fome; 2.

Dar de beber a quem tem sede; 3.

Vestir os nus; 4. Dar pousada aos

peregrinos; 5. Visitar os enfermos;

6. Visitar os presos; 7. Enterrar os

mortos. O tema, recorrente na

iconografia e teologia cristãs, era

particularmente caro aos nobres

napolitanos, uma vez que tinha

sido a prática das obras de

misericórdia que os levara a fundar

a confraria de Pio Monte della

Misericordia em 1602. Seguindo

uma tradição flamenca do

Renascimento tardio, Caravaggio

decidiu representar as sete obras de

misericórdia numa única pintura.

No topo, podem ver­se Nossa

Senhora, o menino Jesus e dois

anjos contemplando a cena. Um

olhar atento permite identificar

doze personagens num beco

escuro. Nalguns casos, a

correspondência entre a cena

representada e as obras de

misericórdia é trivial, noutros é

necessária uma inspecção mais

cuidadosa. Façamos, então, o

exercício de correspondência. No

canto inferior esquerdo vê­se um

homem nobre a oferecer metade da

sua capa a um mendigo, evocando

a lenda de São Martinho (Vestir os

nus). Um pouco acima, está um

estalajadeiro apontando a dois

DEZEMBRO 2021 | BONA FIDES | 6


esquerdo vêem­se traços fisionómicos

de um coxo, quase na

obscuridade: está sentado e tem as

mãos entrelaçadas em sinal de

súplica (Visitar os enfermos). Ao

contrário de outras representações

figuradas das obras de

misericórdias, Cristo não está

pintado como juiz da humanidade,

mas antes como uma criança que

contempla a cena com grande

satisfação.

A PALAVRA

DETONADA E A

FORMA DEFORMADA

JOSÉ MARIA CORTES

Michelangelo Caravaggio, Sete obras de misericórdia (1606–1607).

peregrinos o caminho para a sua

pousada (Dar pousada aos

peregrinos). É possível identificar

o primeiro peregrino pela concha

de Sant’Iago no chapéu. Do

segundo, porém, só se vê a perna

nua e uma orelha. Atrás do

estalajadeiro está um homem de

porte atlético a beber água (Dar de

beber a quem tem sede). Neste

caso, Caravaggio parece ter­se

inspirado na história de Sansão

que, depois de vencer os Filisteus,

saciou a sede com a queixada de

um jumento (Juízes 15, 15–19). No

canto direito vê­se uma mulher

encostada às grades de um cárcere,

dando o peito a um velho

prisioneiro (Visitar os presos e Dar

de comer a quem tem fome). A cena

está especialmente bem iluminada

e remete, de imediato, para a

Caritas romana, isto é a famosa

lenda de Pero e Cimon. Ao lado da

prisão vê­se a celebração de umas

exéquias. Na cena estão

representados o morto, do qual se

vêem apenas os pés, o homem que

o carregou e um sacerdote ou

diácono com uma vela acesa

(Enterrar os mortos). A última

obra de misericórdia é

particularmente difícil de

identificar. No canto inferior

“As palavras e o seu

contágio obedecem a leis

rigorosas. Quando Derrida

escreveu que “não há nada

para além do texto”, intuiu

que muitas vezes as

palavras se usam com a

esperança de que valham

por si, encolhendo os

ombros à realidade.”

As palavras e o seu contágio

obedecem a leis rigorosas. Quando

Derrida escreveu que “não há nada

para além do texto”, intuiu que

muitas vezes as palavras se usam

com a esperança de que valham por

si, encolhendo os ombros à

realidade. Faz-se delas uma

espécie de detonador: apertadas

contra os tímpanos treinados,

DEZEMBRO 2021 | BONA FIDES | 7


estalam no cérebro uma série

calculada de reações, mais ou

menos febris, sem que em

momento algum se pare para

pensar sobre o quê do que foi dito.

Os exemplos são muitos. Veja-se a

“fobia”. Definida nos manuais de

psicologia como “medo irracional”,

a palavra já só se usa assim no

divã. Cá fora, serve de mímica de

indignação, alertando o transeunte

para a presença, nas imediações, de

um rebelde indócil que não

endossou uma certa agenda. O

procedimento é claro: ouvir a

palavra, temer pela vida e desatar a

correr, tudo isto sempre de olhos

fechados. À “fobia” (de prefixo

móvel, a colar consoante a

conveniência) caiu-lhe, portanto, o

conteúdo clínico, trocando-se

“medo irracional” por “héterodoxia

pavorosa”.

Também as “igualdade”, “justiça”

e “liberdade” pularam sobre as

consciências para as bocas,

deixando pelo caminho o seu

sentido. A “igualdade”, o novo

bezerro de ouro, tornou-se a

injustiça da igualação do que é

diferente. A “justiça”, injustiçada,

viu-se ungida de bengala da

igualdade (desta nova igualdade,

leia-se: “fazer justiça” é agora fazer

tudo para que tudo se trate por

igual). E a “liberdade”, coitadita,

que outrora tirou o homem do

macaco, é hoje signo de um

espernear símio contra tudo o que é

limite, da tradição à biologia,

passando pela medieval mania de

tapar com tecido a pele nua.

O mote de Derrida parece, ainda

assim, pecar por obesidade.

Glutão, o pós-moderno vê o fosso

cavado entre as palavras e as

coisas, entre a linguagem e a vida,

e abocanha a conclusão de que por

esse fosso nunca passou um fio

sequer, alguma coisa que impeça

os pólos de escorregarem para a

absoluta incomunicabilidade. E,

assim, Derrida, e com ele o credo

desconstrutivista, faz da linguagem

uma nuvem no vazio. Mas

a pós-modernice, como outras

formas de fartura, cura-se com

dieta. Temperando a intuição

pós-moderna, vemos que,

apesar de tudo, a ligação do

verbo com a realidade nunca

se sepulta. Na verdade, o

referente concreto da palavra dá

lugar a vigários vagos, confusos,

coleções de emoções e memórias.

E estes são coisa, não texto. São,

contudo, outra coisa.

O velhinho Direito, e os cultores

dessa decana ciência, não

escaparam à tendência. Prova

disso é a curiosa inversão, entre

nós, do significado das palavras

“forma” e “matéria”. Vejamos.

Desde Aristóteles, chamamos

“forma” ao princípio constitutivo

da coisa. A forma de uma coisa é

aquilo que põe ordem na matéria,

que a estrutura, aquilo sem o qual

a matéria é massa difusa,

pluralidade de partes. A forma de

uma salsicha, por exemplo, é a

ordem que reúne os restos

abandonados de um animal, que os

salpica de condimento, que os

cobre de um invólucro e que nos

dá, enfim, a salsicha. Sem a sua

“forma” teríamos os restos, o seu

abandono, o condimento, o

invólucro, mas não a salsicha.

Assim, a forma é irmã – quase

gémea - da substância (aquilo sem

o qual a coisa deixa de ser o que

é). Da intimidade dessas noções os

escolásticos tiraram a de “forma

substancial”. Mais próximos da

verdade estaríamos, portanto, se

disséssemos que a forma da coisa

é a coisa, a sua substância, e que a

matéria é acessória, um seu

acidente. Resgatando a matéria da

pluralidade para a unidade, do

caos para a inteligibilidade, da

potência para o acto, a forma é

como que mais essencial. Para

dizer, então, que uma coisa era

mesmo, os antigos, e os

escolásticos com eles, diriam que

a coisa o era “formalmente”. E se

uma coisa só parecesse, sê-lo-ia

“materialmente” 3 .

Hoje, dizemos ao contrário. Cedo

no primeiro ano do curso de

Direito, talvez no primeiro

manual, talvez até no primeiro

capítulo, o estudante é prevenido

contra os perigos do “formalismo”.

Não há jurista que não

saiba que os argumentos “formais”

são as batotas, que enganam, que

só olham às aparências. Os

“materiais”, por seu lado,

vasculham a valiosa “materialidade”

e só esses, que vão

directos ao coração, valem.

Lembre-se o caso da falsa

chaminé.

Ainda que o nosso Direito não

arrisque uma definição de “forma

jurídica”, vai aludindo a algumas

“formas”. É o caso do artigo 219.º

do Código Civil 4 . A sua fórmula é

sugestiva: o leitor atento aprende

que a “forma” do negócio é

secundária, ainda que às vezes

muito valiosa (e só aí obrigatória).

Mas o seu ocasional valor não

assenta na indispensabilidade para

que o negócio seja o que é, mas

sim para que fins contíguos se

3

Na doutrina católica, o aristotelismo

perdura, confirmado, entre outras, na

noção de heresia. Se, por um lado, o

cristão fiel pode incorrer em heresia

material, errando quanto a um

elemento doutrinal, ao herege

reserva-se a categoria de heresia

formal, ao rejeitar uma verdade

essencial da Fé.

4

Diz-nos o artigo que “a validade da

declaração negocial não depende da

observância de forma especial, salvo

quando a lei a exigir”.

DEZEMBRO 2021 | BONA FIDES | 8


cumpram. E que fins esses? A

Doutrina responde: com a

solenidade da “forma”, evita-se

que as partes celebrem de ânimo

leve negócios de envergadura.

Protege-se as partes, dobrando-se

a esse fim o seu consenso – a

substância do negócio. O termo

“forma” descolou-se então do

conceito “substância”, passando a

referir um acidente. Daí a

inversão.

Fazer-lhe a genealogia é difícil.

Indo muito atrás, poderia dizer-

-se que entronca na rejeição

nominalista da presença

das “formas” no mundo, que o

reduziu a uma sopa de matéria

confusa, aliada à elevação da

matéria, semeada pelo Renascimento

e colhida pelo

Iluminismo, a objecto de estudo

por excelência. A matéria, sozinha

nesse universo frio, sem formas

que a moldassem, passou de

potência a acto, e de acto a ídolo.

Estas ideias, inundando primeiro

as cabeças dos filósofos, foram

pingando sobre a cultura, e desta

escorreram para a linguagem, que

é aquilo que o jurista, a custo, usa

para falar. E, assim, o modo de

conhecer das ciências naturais,

pelo qual o biólogo abre a rã inerte

para lhe cuscar as entranhas,

engoliu-nos a imaginação. Tanto

que, quando hoje pensamos em

conhecer mesmo, o método

experimental e a sua busca pelo

interior físico, pelo átomo mais

ínfimo, nos aparecem como

imagem. Talvez seja isto: o

interior físico, onde a matéria

mora e o cientista se demora,

tornou-se símbolo do conhecimento,

ou seja, do acesso à

essência. A matéria passa então a

ser, na imaginação colectiva, a

essência - a substância. E isto da

imaginação conta mesmo. Quando

pensamos em furar o superficial

para chegar ao profundo, a

imagem que nos surge não andará

muito longe da imagem de,

sacando do bisturi ou do

microscópio, furar uma superfície

física para chegar a um fundo

físico. Talvez por isso chamemos

matéria à forma e forma à matéria.

Por fim, o óbvio. O jurista está

bem em evitar os argumentos

“formais”, porque não falam da

forma, mas do engano. E bem está

em buscar a “materialidade”, que

mais não é que a antiga forma.

Custa só pensar que o bom, velho

Aristóteles, se nos visitasse lá do

limbo dos justos, voltaria a correr

depois da primeira conversa.

CATARINA D’OREY:

“SORRIR E ACENAR,

RAPAZES”

Em outubro de 2018, o jornalista

Jamal Khashoggi entrou na

Embaixada da Arábia Saudita, em

Istambul, convencido de que iria

buscar documentos necessários

para o seu casamento, marcado

para breve. Em vez disso, foi

assassinado brutalmente por 15

agentes ao serviço do príncipe da

Arábia Saudita, Mohammed bin

Salman (MBS), segundo as

conclusões da CIA.

Este caso, bastante chocante, é

infelizmente possível, e verídico,

para um país como a Arábia

Saudita, que tem um regime

autoritário e reiteradamente

violador de direitos humanos. É o

mesmo país onde os maridos são

guardiões legais das mulheres e

onde exercer a liberdade de

expressão pode levar a uma morte

como a de Jamal Khashoggi.

O Grand-Prix da Fórmula 1 vai

realizar-se lá.

Também no Qatar vigora um

regime abusivo, sobretudo para

mulheres, trabalhadores, e

qualquer pessoa que deseje

expressar opiniões divergentes

livremente.

O Mundial de futebol vai realizarse

lá.

Parece que até a defesa

institucional de certos valores tem

um preço.

Na verdade, estes regimes pagam,

a peso de ouro, a sua condição de

anfitrião. Em troca, recebem um

serviço de limpeza das atrocidades

que cometem, podendo continuar a

perpetuá-las, desde que haja uma

fotografia sorridente a abrir uma

corrida de Fórmula 1 ou um jogo

do Mundial.

Tem sido uma tendência frequente,

começar a minimizar o que

verdadeiramente se passa nestes

países, graças à cooperação

institucional, nomeadamente, a

desportiva.

Ao invés de combater esta

tendência, fazendo uso da sua voz

e poder e pressionando à mudança,

as instituições do desporto mundial

mostram que as suas finanças

reinam – e que podem defender os

direitos humanos, mas só até um

certo montante.

Não é necessário que assim seja,

não é utópico desejar que seja de

outra forma. Na época do

apartheid, também o desporto foi

um meio de fazer pressão política à

Africa do Sul, motivando à

DEZEMBRO 2021 | BONA FIDES | 9


mudança de um regime tão

flagrantemente injusto.

Felizmente, sobre o Mundial, a

seleção da Dinamarca já tomou

uma posição. Vai substituir os

patrocínios das camisolas por

mensagens de denúncia daquilo

que se passa no Qatar, vai

desincentivar os seus adeptos a

irem ver os jogos ao vivo no Qatar,

vai selecionar o hotel de estadia

conforme as suas políticas laborais,

entre outras medidas.

Espero sinceramente que outras

seleções sigam o exemplo,

incluindo a Seleção Portuguesa.

Perante este triste cenário geral de

cumplicidade, é o mínimo que se

pode fazer; mas já é mais do que

fechar os olhos e sorrir para a

fotografia. Quantos menos

colaborarem, mais esperança

podemos ter e inspirar.

SÃO CRISTÓVÃO

SIMÃO PEREIRA DA

SILVA

São Cristóvão era um gigante

canaanita que fez parte da corte do

Rei de Canaã; até que decidiu que

era seu desígnio servir o maior

príncipe no mundo. Foi então

servir aquele que era tido como o

melhor rei no mundo. Serviu-o até

o dia em que o viu benzer-se após

menção do diabo. Ao aprender que

o rei receava o diabo, partiu em

busca deste.

Encontrou o e serviu-o até ao dia

em que o diabo fugiu

dum crucifixo. Ameaçando-o,

conseguiu que o diabo lhe contasse

a história dum Cristo que temia.

Foi então à procura de Cristo

Vagueou muito tempo pelo deserto

até encontrar um eremita. Este

disse-lhe que, para servir Deus,

Cristóvão teria de jejuar e rezar.

Respondeu-lhe que de tal não era

capaz. Como era de grande

estatura, o eremita propôs-lhe que

servisse Cristo ajudando as pessoas

a atravessarem um rio perigoso, no

qual muitos se afogavam.

Após assim ter feito durante algum

tempo, uma criança pediu-lhe para

que o atravessasse. Mas na

travessia, o rio aumentou em

tamanho e a criança pesava cade

vez mais até ao ponto em que

Cristóvão receou afogar-se. E

quando chegou à outra margem

acusou a criança de o ter colocado

em perigo.

Esta respondeu-lhe que o peso que

sentira não era apenas o peso do

mundo como também o peso

d’Aquele que o criou, pois Ele era

Jesus Cristo Rei a quem servia com

todas as travessias.

JUSTIÇA SOCIAL -

NESTE CASO, A

DOUTRINA NÃO

DIVERGE…

A sociedade garante a justiça

social, quando realiza as condições

que permitem às associações e aos

indivíduos obterem o que lhes é

devido, segundo a sua natureza e

vocação. A justiça social está

ligada ao bem comum e ao

exercício da autoridade.

A justiça social só pode alcançar-se

no respeito da dignidade

transcendente do homem. A pessoa

constitui o fim último da

sociedade, que está ordenada para

ela: A defesa e promoção da

dignidade da pessoa humana

«foram-nos confiadas pelo

Criador, tarefa a que estão rigorosa

e responsavelmente obrigados os

homens e as mulheres em todas as

conjunturas da história 1 .

O respeito pela pessoa humana

implica o dos direitos que

dimanam da sua dignidade de

criatura. Esses direitos são

anteriores à sociedade e impõemse-lhe.

Estão na base da

legitimidade moral de qualquer

autoridade: desprezando-os ou

recusando reconhecê-los na sua

legislação positiva, uma sociedade

atenta contra a sua própria

legitimidade moral 1 . Faltando esse

respeito, uma sociedade não tem

outra solução, senão o recurso à

força e à violência, para obter a

obediência dos seus súbitos. É

dever da Igreja trazer à memória

dos homens de boa vontade

aqueles direitos, e distingui-los das

reivindicações abusivas ou falsas.

(Pontos 1928-1930 do

Catecismo)

DEZEMBRO 2021 | BONA FIDES | 10


CAPITALISMO, NA VISÃO DE

UM CATÓLICO -

EDUARDO CORDEIRO

A fé leva-nos a pensar de forma diferente e a

.

ter

preocupações que moldam o nosso pensamento

político. O homem está no centro do mundo e é

originariamente digno, cabendo aos outros respeitar

a sua posição. Ninguém tem autoridade para definir

a dignidade do outro, porque esta é apenas constatada

e reconhecida, fazendo parte da essência de cada um.

Na minha perspetiva, o modelo económico de um

país tem de reconhecer a liberdade ao cidadão. O

Estado não deve ter medo das escolhas e decisões das

pessoas e não deve prejudicar aqueles que trabalham

e se esforçam mais. A liberdade económica

consubstancia-se no direito de propriedade, que deve

ser respeitado por todos. O mercado, criador de

concorrência e crescimento, não deve ser visto com

aversão ou desprezo.

Contudo, esta perspetiva liberal tem de ser conciliada

com uma clara condenação de sociedades que

esquecem os pobres, os doentes, os presos, os

excluídos, os marginalizados, os fracos e os

oprimidos. A vida em comunidade só tem sentido

enquanto os seres humanos se preocuparem pelo

bem-estar dos outros e a participação política deve

acolher sempre essa preocupação. Por outro lado, a

sociedade não deve ser uma sociedade isenta de

valores.

Na história da humanidade, já se pensou impor o bem

comum contra a liberdade das pessoas, numa ótica de

coação. Esta ótica tem de ser repudiada por quem tem

apreço pela liberdade dos indivíduos, como

expressão da sua integridade e do seu valor.

Quem tem a sorte de viver com possibilidade de fazer

escolhas não deve olhar com desprezo para o que

vivem em climas de violência, degradação e doença.

A marginalização e a exclusão são problemas

gravíssimos e estão na origem de atos que nós

condenamos, mas sem ter o mínimo interesse pelas

causas. Não é por acaso que as perturbações à ordem

pública ocorrem maioritariamente em ambientes de

profunda miséria.

O Estado deve, portanto, intervir na economia, em

nome da dignidade da pessoa humana, mas também

em nome da liberdade. Parece-me estranho que se

Um católico deve transpor para as ideias políticas o

VS

UM RICO NO REINO DOS

CÉUS - SOCIALISMO E

CATOLICISMO - FRANCISCO

BAGORRO

Ao longo da história, a noção de socialismo tem vindo

a ser desvirtuada, para que a partir dela se possa

ludibriar o povo e esconder as verdadeiras intenções

daqueles que proclamam o seu “socialismo”, é

exemplo disso o nacional-socialismo ou a perversão

estalinista, entre outras. Na aceção que partilho,

socialismo não é mais que a propriedade coletiva dos

meios de produção, ou como diz a máxima - o

socialismo consiste em usar (usufruir) sem possuir.

Não se trata de uma estatização de tudo, antes da

entrega dos meios de produção ao povo e não a uma

instituição abstrata e anónima denominada “Estado”.

Ao entender que, no limite, o cristianismo não é mais

que um imitatio Christi, percebemos a relevância da

figura de Cristo, que se torna presente na Eucaristia,

através da qual somos convocados a cultivar as

virtudes de Cristo - amor, caridade, gratuidade,

gratidão, misericórdia, etc.. Cristo, enquanto figura

histórica, comporta uma mudança no paradigma social

da comunidade moral, isto é, ultrapassando as

restrições étnicas colocadas pela religião semita à

pertença da comunidade, Jesus vem expandir a

comunidade moral, como diz São Paulo: “somos todos

um em Cristo rei”.

Pelos motivos aqui explicados, acredito que o ser

humano tem um espírito de natureza coletiva, em que

a humanidade de cada é na medida da humanidade do

outro que o rodeia, como me ensina a experiência

católica que tenho vindo a fazer. A noção de

atomização do indivíduo, preconizada pelo

neoliberalismo vigente, só vem contribuir para a

alienação e para a continua exploração do Homem

pelo Homem.

Para além disto, é relevante entender a liberdade

enquanto valor chave para o cristianismo. A retórica

liberal apregoa-se como a única defensora da

autonomia privada, contudo, não podia estar mais

longe da verdade. Na minha ótica, um católico, assim

como um socialista, deve defender a liberdade

individual, nos campos económico, político, religioso

e intelectual, contra as ingerências e atitudes

coercitivas do poder, especialmente DEZEMBRO 2021 | BONA do poder FIDES | do 11

mercado. Acredito que uma pessoa, com casa, com

saúde, com educação e com uma rede de apoio


em nome da liberdade. Parece-me estranho que se

invoque este valor para ignorar problemas sociais,

quando não há nada que mais prive o ser humano

do que a pobreza. O apreço pela liberdade passa por

uma luta empenhada na melhoria das condições de

vida destas pessoas.

Um católico deve transpor para as ideias políticas o

exemplo de Jesus Cristo e lutar por uma sociedade

que não seja indiferente aos mais pobres. Como

católico e como pessoa de direita, acredito num

Estado que não tenha medo nem do crescimento

económico nem da concorrência, mas que não se

demita de ter um papel de intervenção social.

e intelectual, contra as ingerências e atitudes

coercitivas do poder, especialmente do poder do

mercado. Acredito que uma pessoa, com casa, com

saúde, com educação e com uma rede de apoio

económico e social é mais livre do que uma pessoa

sujeita aos anseios de um mercado financeiro.

Na minha perspetiva, a construção do socialismo não

deve ser feita pela razão da força, mas pela força da

razão - quando se obriga alguém a servir a comunidade

(como todos os católicos são chamados a fazer), deixa

de ser serviço e passa a ser escravidão. A construção

de uma sociedade socialista deve passar pela aceitação

de cada um dos membros da comunidade, através do

exercício da sua razão e liberdade. Sou levado a crer,

que o exercício da razão e da liberdade não passa pela

leitura e reflexão filosófica, antes, passa por sair com

os que procuram, olhar de onde olham os que veem e

permanecer com os que se encontra.

Para concluir, só em Deus é possível construir uma

sociedade mais justa. A permanência na eterna

esperança de uma era de muito mais verdade, muito

mais justiça, uma era, onde se alcançará os campos

distantes onde se semeia o futuro, só é possível na

experiência de Cristo, não enquanto reminiscência

devota, mas antes como uma presença viva e

contemporânea.

DESAFIOS

LÓGICOS

PROFESSOR JORGE

NUNO SILVA

1º- Um homem entrou num pomar

e roubou algumas maçãs. Contudo,

ao regressar a casa, foi

surpreendido, à vez, por sete

polícias. A cada um deles pagou

uma multa. Ao primeiro, deu

metade das maçãs que levava e

mais uma maçã; ao segundo, pagou

metade das maçãs que lhe restaram

mais uma maçã; e assim

sucessivamente. Após encontrar o

sétimo agente da autoridade, o

nosso homem carregava uma

maçã. Quantas maçãs colhera no

pomar? (Origem: Fibonacci, séc.

xiii).

2º- Um homem dividiu pelos filhos

uma certa quantia de dinheiro. Ao

mais velho disse: eis um euro mais

um sétimo do restante. Chamou

depois o segundo, e disse-lhe: tu

recebes dois euros mais um sétimo

do que ficar. Ao terceiro, disse: tu

receberás três euros mais um

sétimo do que restar. E assim

sucessivamente. Ao último filho

deu tudo o que restava. Acontece

que todos receberam por igual.

Qual era a quantia original e quanto

recebeu cada filho? (Origem:

Fibonacci, séc. xiii).

3º- Dois homens juntaram-se para

almoçar. Um contribuiu com cinco

pratos, o outro com três. Os pratos

são de valor idêntico. Um terceiro

amigo juntou-se, e dividiram o

repasto igualmente pelos três. No

fim, o terceiro, como não

contribuiu em géneros, deu 8€ aos

amigos. Como deve esta quantia

ser dividida pelos dois? (Origem:

Bachet, séc. xvii).

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EQUIPA BONA FIDES

EDIÇÃO:

ALICE CORREIA PIRES

COLUNISTAS:

JOSÉ ABRANCHES PINTO

LUÍS PIDWELL

DESIGN E ILUSTRAÇÃO:

SIMÃO PEREIRA DA SILVA

ISABEL HERÉDIA FORERO

* Se quiser ser benfeitor desta revista mande mbway indicando o

seu nome para: 916164550. Obrigado, a sua ajuda é importante.

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