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essencial, seríamos autênticos e, portanto, livres. O preço da liberdade é a
solidão com essência. Logo, a solidão é positiva, pois a liberdade é a única
forma de existência em seu sentido mais pleno.
Não estou afirmando que os artistas que comentarei são discípulos de
Heidegger, mas que o filósofo, em sua ideia de liberdade pautada na solidão
como condição de existência humana, sintetizou muito do que se pensou
sobre estar só desde pelo menos o século XIX. Em um estudo bastante
interessante, a professora de literatura inglesa Amelia Worsley mapeou o
surgimento da própria palavra solidão (loneliness) na língua de Shakespeare.
Percebeu que, até o século XVII, a palavra quase nunca era usada. Quando o
era, designava algo muito distinto do que concebemos hoje. Em um glossário
de palavras pouco usadas, compilado em 1674 por John Ray, “solidão” é
definida como estar “longe dos vizinhos”. Ou seja, era condição física, um
isolamento perigoso, pois indicava que alguém estava longe da proteção
oferecida pelo grupo. Quando lemos o clássico de Milton O paraíso perdido, de
1667, deparamo-nos com uma das primeiras criaturas solitárias na literatura
inglesa: o Demônio. Satã é descrito como aquele que dá “passos solitários”
para fora do inferno, enquanto se direcionava ao Jardim do Éden para tentar
Eva. Se lermos com atenção, veremos, como Worsley chamou atenção, que a
solidão do Diabo não é uma condição psicológica, mas, sim, física: ele dá
passos solitários, pois sai de seu terreno conhecido para andar onde nenhum
anjo antes andara. Milton revela um demônio solitário, pois vulnerável.
Ao longo dos séculos seguintes, especialmente no movimento romântico,
tanto na Europa quanto nas Américas, solidão se transformou de algo físico,
uma condição de vulnerabilidade advinda do isolamento, em um sentimento,
uma condição da mente. Poetas, escritores e artistas de toda espécie
passaram a criar em função da solidão. A nova concepção de estar só era
sinônimo de escapismo, uma escolha pessoal para que o indivíduo pudesse,
conscientemente, fugir das angústias da vida em sociedade. A sociedade,
especialmente a vida urbana, passa a ser vista como fútil e plena de relações
pessoais superficiais. Lord Byron, descrevendo como poucos esse
pessimismo, essa insatisfação com a vida, escreveu que “é na solidão que
estamos menos sós”. Não se elimina a ideia de que estar só envolve perigo,