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O Dilema do Porco Espinho - Leandro Karnal

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cabisbaixo e perdido, as mãos inertes, os ombros caídos como se sustentasse

o peso da solidão de toda a floresta escura atrás dela. Solidão, ausência e

melancolia plasmadas em tela. Arte, às vezes, dói.

Há, entretanto, outra forma de solidão na arte. Uma solidão que contém o

abandono não somente como dor e desamparo, mas como condição

primordial para a liberdade. O filósofo Martin Heidegger, em Os conceitos

fundamentais da metafísica: mundo, finitude, solidão, parte de uma pergunta

muito simples para chegar a essa formulação: “O que é mundo?”. Se a

pergunta é simples, a resposta não o é, e para respondê-la Heidegger lança

mão de comparações entre objetos inanimados, animais e humanos em sua

relação com o mundo. Para ele, uma pedra, como ser inanimado, é “sem

mundo”, pois como uma mera coisa, um ente material, ela seria

essencialmente algo sem consciência de pertencer a um todo maior, não teria

forma de acessar nada. Pedra é pedra, e isso não lhe causa dor, infortúnio ou

prazer, pois essa é sua natureza como ser. Já um animal seria “pobre de

mundo”, pois o animal teria outro modo de ser, um meio-caminho, não

chegando a ser consciente do todo, mas participante dele. Explicando como

um epicurista, e não como Heidegger, um animal busca instintivamente

evitar a dor e ter mais prazer. Isso não é uma atitude de um ser consciente,

mas um instinto primal. Por isso o cachorro, se deixássemos, passaria o dia

inteiro recebendo carinho do dono, comendo ou dormindo. Por fim, voltando

ao filósofo alemão, o homem seria “formador de mundo”, ou seja, existiria

“no mundo”, tendo consciência de ser, de intervir e de produzir realidades.

Para Heidegger, e aqui chegamos ao ponto que nos interessa diretamente, o

“ser no mundo” é uma condição solitária. Essa condição seria original:

nascemos sós. Ao virmos ao mundo, rompemos nossa ligação com outro ser e

passamos a vida sozinhos, atravessamos o rubicão, e a sorte está lançada para

cada um de nós lidar com ela. Se por um lado enxergássemos essa condição

basilar de solidão como uma maldição, não nos conformássemos com ela e

tentássemos negá-la, nos tornaríamos seres inautênticos, seríamos

estranhos a nós mesmos. Flutuaríamos ao redor de quem ou o que nos desse

a ilusão de companhia, nos tornaríamos secundários em nossa própria

existência. Por outro lado, se abraçássemos essa condição de solidão inata e

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