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O Dilema do Porco Espinho - Leandro Karnal

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assoalho quase se viram contra o espectador. Na primeira versão, os espaços

entre essas tábuas são enormes. Van Gogh sofria de uma angústia solitária

extrema. Os objetos são quase todos duplos: cadeiras, travesseiros, portas etc.

Tudo parece indicar a espera de outro, que nunca chegou. A angústia desse

holandês transbordava por seus pincéis e suas telas em ritmo frenético.

Sentia dor pelo peso financeiro que impunha a seu amado irmão, Theo.

Nenhuma mulher ficava com ele por muito tempo. Não conseguiu seduzir

Gauguin como amigo e colega de arte. Aliás, a porta esquerda que vemos nas

três versões do quadro era a do quarto reservado para Gauguin lhe fazer

companhia. O pintor francês também estava sendo bancado por Theo, com a

única missão de servir de companhia ao atormentado e solitário Vincent.

Brigavam o tempo todo e eram opostos em quase tudo. Van Gogh gostava de

pintar ao ar livre, no ritmo frenético de alguém que tinha um “coração

fanático” (como descreveu ao seu irmão), usava cores simples e fortes, e

verniz para finalizar as telas. Gauguin era cerebral, preferia ambientes

internos para produzir, detestava as cores do colega e não usava verniz. Van

Gogh pintou dois quadros com cadeiras vazias representado essa dualidade. A

primeira segue a palheta que marcou sua produção, tem pinceladas grossas,

iluminação natural. A cadeira solitária e vazia é simples, de palha, com um

cachimbo e tabaco em cima. O pintor precisava de pouco. A cadeira de Gauguin

parece o reverso da sua. De madeira escura, torneada, assento de tecido fino e

trabalhado. A cena é escura, com uma luminária artificial de parede

projetando luz; o chão contrasta com as lajotas vermelhas de A cadeira de Van

Gogh. Livros e uma vela estão em cima dela: a racionalidade e a imaginação de

Gauguin. “Tentei pintar seu lugar vazio, a pessoa ausente”, descreveu. Pintou

dois lugares vazios e ausentes. Atormentado com o abandono do amigo e em

meio a delírios, cortou a própria orelha. Suicidou-se; solitário até o fim. Essa

solidão rendeu em criatividade, mas também em tormento e dor. A produção

foi estimulada pela concorrência e pelo antagonismo de Gauguin. Solidão na

centelha, companhia por antinomia na criação, isolamento que levou à

tragédia. Sem dúvida, um caso extremo.

Há outras produções que se transformaram em epítome da solidão. Rainer

Maria Rilke, pensando nos críticos de arte, escreveu que “as obras de arte são

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