Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Mas não é à toa que imaginamos renascentistas como gênios solitários,
excêntricos e à frente de seu tempo. Foi no Renascimento que se inventou
essa cultura do gênio, que, modificada por muitos séculos, cultuamos até
hoje. Patronos e artistas passaram a pensar as artes plásticas como diferentes
e superiores a outras técnicas e ofícios. Antes, um mestre de obras, uma
escola de vitrais ou de pintores e uma corporação de ofício de artesãos e
carpinteiros tinham praticamente o mesmo status na Europa. Surge, no fim
da Idade Média e no início da Modernidade, essa distinção clara que temos
até hoje entre (Belas) Artes e Artesanato (como técnica inferior). É só pensar
no próprio Leonardo. Das telas que sobreviveram e chegaram até nós, não são
poucas (e os especialistas são unânimes em dizer) aquelas em que é possível
observar a mão de mais de um pintor, provavelmente um aprendiz. Leonardo
assina o trabalho coletivo. John Lennon e Paul McCartney marcaram, como
dupla, o som pop do século XX. Dois talentos ímpares, de formações tão
díspares, criaram história juntos entre 1980 e 1985, quando juntaram forças:
Warhol e Basquiat. Os irmãos Joel e Ethan Coen, Jean-Pierre e Luc Dardenne
ou Paolo e Vittorio Taviani criaram obras-primas cinematográficas e foram
tantas vezes laureados trabalhando juntos. O central é a fagulha criativa, a
singularidade da obra. Essa é solitária.
Eu disse que esse mito do artista ou cientista solitário pode ser bastante
pernicioso. Explico. Como escreveu o crítico Peter Schjeldahl: “O artista é um
ser estranho. Creio que é seguro afirmar que o artista de verdade sabe que
tem uma singularidade que é parcialmente bênção, parcialmente maldição.
Um artista usufrui e sofre com isolamento. Como solidão, o isolamento pode
nutrir. Também pode destruir”. Nada mais preciso. Pensemos um caso
concreto e terrível: Van Gogh. O pintor teve uma existência bastante solitária
e trágica. Em seu caso, solidão era o palco da criação, mas o isolamento o
picadeiro da desgraça pessoal. Tomemos a bela e melancólica tela Quarto em
Arles, pintada em três versões, entre 1888 e 1889. A primeira está no Museu
Van Gogh, em Amsterdã. A segunda, no The Art Institute of Chicago. A
terceira, no Musée d’Orsay, em Paris. Se observarmos o esboço que Vincent
mandou em carta a seu irmão, Theo Van Gogh, temos equilíbrio. Nas
pinturas, contudo, tudo parece estar prestes a desmoronar. As tábuas do