21.11.2021 Views

O Dilema do Porco Espinho - Leandro Karnal

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

estranhamento. Na vida pessoal, foi um acumulador, traço característico de

pessoas com problemas sérios de intimidade. Acumular objetos talvez seja

uma forma de construir barreiras materiais dentro das quais me protejo e me

escondo. Saía de casa munido de uma pletora de máquinas fotográficas e

gravadores, usando-os como filtros de seus contatos com outras pessoas.

Homem magro, de cabelo singular, extremamente pálido e com pele

manchada (por doenças que teve na infância), era um tímido inveterado.

Passou boa parte da vida adulta sofrendo de amores quase sempre platônicos

(ou não sentimentalmente correspondidos) por vários garotos bem mais

jovens. Truman Capote, um dos muitos alvos de suas afeições, foi vituperioso

ao descrevê-lo como alguém que “desde o berço, era um perdedor”

irremediável, “a pessoa mais sem amigos e sozinha que já conheci na vida”.

Laing liga a produção de Warhol à sua vida introspectiva e solitária em

meio à multidão. Desde 1960, por meio de filmadoras, máquinas polaroides,

gravadores de som, ele criou muito de sua arte. Especialmente nos anos 1980,

não era possível vê-lo numa festa sem um ou mais desses aparelhos. Warhol

estava sempre atrás de uma dessas máquinas, nunca se expondo sem a

proteção delas. Ao mesmo tempo, os filmes, foots e sons eram formas de

capturar as pessoas sem que elas, como produto, pudessem lhe causar algum

mal, “um estratagema de enorme apelo à solidão, vindo de alguém cujo medo

da rejeição era quase tão intenso quanto seu desejo por intimidade”.

Meu intento ao narrar um pouco de Kubrick ou de Warhol não é reforçar

um mito. Há uma falácia, perigosa em certo sentido, que insiste na ideia do

gênio solitário. Nas artes e nas ciências, ninguém cria totalmente sozinho ou

a partir do nada. Muita gente imagina Michelangelo solitário, em silêncio,

pintando a Capela Sistina, ou Leonardo em seu ateliê criando mais uma obraprima.

A verdade está longe disso. Se o leitor ou a leitora estava prestando

atenção, desde o início falei que artistas estão ladeados de assistentes e

colaboradores o tempo todo. Mais do que isso: estudaram com alguém,

formaram outras pessoas; trocaram impressões e técnicas com outros

artistas; apropriaram-se, inspiraram-se e, até aprenderem, copiaram outros

artistas anteriores ou contemporâneos. Todo o processo de técnica, muitas

vezes o de inspiração também, envolve colaborações e o avesso da solidão.

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!