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O Dilema do Porco Espinho - Leandro Karnal

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Há pessoas que têm ódio, raiva, babam diante de obras ou performances em

museus. Outras parecem flutuar diante da mesma exposição. Há quem chore,

alguns emudecem, sorriem, se inspiram. Cada reação, solitária como a luz da

vela, por mais distinta da outra, é uma forma de afeto. A luz da arte

definitivamente nos afeta, nos dá auréola, como se fôssemos, por instantes,

objetos na mesa de Camões. Nesse sentido, a arte não precisa ser a coisa que

retrata. Ela transcende a coisa, torna-se mais do que ela. A arte nos

maravilha. Spinoza define o maravilhamento como uma imaginação, algo

ainda não articulado, que produz uma espécie de paralisia, uma suspensão

momentânea do entendimento. São aqueles segundos, minutos ou meses em

que demoramos para assimilar plenamente uma experiência transformadora.

Por fim, uma obra de arte é, em si, um artista capaz de criar, como um

poeta. Isso mesmo: a arte cria. Isso tem a ver com a recepção da obra, sempre

viva, cambiante, única, solitária. Cada pessoa, individualmente, lê e relê a

obra, e, a cada releitura, descobre algo novo, algo que, aparentemente, não

estava ali antes. A arte tem vida própria, gênio criativo em si. O artista pode

ter imaginado uma intenção ao fazê-la, um sentido para ela. Pode tê-la dado

por pronta e acabada. Mas ela resiste ao tempo e engendra novos sentidos a

cada geração que desfila diante dela. Não precisamos ir longe para entender:

você nunca releu um livro que tinha adorado? Por vezes, deixamos de gostar

na releitura. Em outras, gostamos ainda mais. Às vezes, por diferentes

motivos. A obra nos recria a cada leitura. Panta rei: mudamos, a obra e eu, a

cada reencontro.

A partir disso, reparem quanto de solidão a arte contém. Comecemos

nosso raciocínio com a solidão do próprio artista em seu processo de criação.

Alguém pode ser um notório notívago, viver em festas cercado de amigos e

amantes, mas, para criar, a centelha divina espoca em cabeça, coração e mãos

solitárias. Posso pintar uma modelo, filmar uma multidão, estar cercado de

colaboradores e ajudantes. Ainda assim, há um tempo próprio do artista e da

obra, uma solidão da criação.

Não me refiro a pessoas que se recolheram depois de se aposentarem,

como Greta Garbo, por exemplo. Ou que se retiraram de seus ofícios por conta

de doenças, distúrbios ou drogas, caso de Syd Barrett. Eu me refiro à solidão

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