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O Dilema do Porco Espinho - Leandro Karnal

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fogo, o calor do poeta: “Tudo era olhar nesse pequeno universo, que é uma

mesa iluminada dentro da solidão de um trabalhador”. Logo, como poderia

ser diferente? Como o gato, que compartilhou tanta luz, não se tonaria

naturalmente cúmplice e supriria a ausência da vela? “O gato de Camões

certamente não se sobressaltou quando a vela morreu. O gato, este animal

vigilante, este ser atento que observa dormindo, continua a vigília de

conceder luz com o rosto do poeta iluminado pelo gênio.”

Uma obra de arte, especialmente boa (sei quanto isso é subjetivo), tem

essa potência do gato, da vela e do poeta. Um filme que une roteiro, direção,

atuação e edição é uma obra de arte nesse sentido. Um quadro, escultura,

música ou filme são gato porque são signo, representação. Na ausência da

vela, o gato brilha por ela. A arte não é somente aquilo que é representado

nela. É mais e é também a negação dela. Vamos a um exemplo concreto e

clássico. Magritte pintou um cachimbo em estilo catálogo de produtos e

escreveu, em letras escolares, embaixo: “Isto não é um cachimbo”. Sim! Não

é um cachimbo, mas uma representação, um símbolo do cachimbo. Assim

como Banville comentando Camões não é Camões. E Bachelard comentando

Banville, que comenta Camões, só aumenta a trilha de uma representação da

representação. Por outro lado, se não houvesse a legenda no quadro de

Magritte e perguntássemos a um transeunte o que ele vê na imagem,

dificilmente escutaríamos algo diferente de “um cachimbo”. Ou seja, o texto

nega a imagem, mas também nega a si próprio. Ele me diz que não se trata de

um cachimbo, mas eu vejo um cachimbo! Tampouco a legenda é um

cachimbo. Em quem acreditar? Essa talvez fosse a peça que o artista nos

pregava: quem tem mais autoridade? A coisa representada (o cachimbo), a

representação da coisa (a tela que mostra uma pintura de cachimbo, logo uma

imagem) ou o texto que nega que aquilo seja um cachimbo? Essas muitas

camadas da arte mostram seu poder de iluminar sem ser vela, mas gato; sem

ser a coisa em si, mas a representação da coisa.

Também podemos pensar a arte como vela, algo que ilumina nossa

solidão, nossa existência. Quantas vezes, um filme, livro, música ou obra

qualquer iluminou meandros escondidos de todos nós, locais que nem sequer

imaginávamos existir. Pode iluminar e nos transformar por meio dessa luz.

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