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fogo, o calor do poeta: “Tudo era olhar nesse pequeno universo, que é uma
mesa iluminada dentro da solidão de um trabalhador”. Logo, como poderia
ser diferente? Como o gato, que compartilhou tanta luz, não se tonaria
naturalmente cúmplice e supriria a ausência da vela? “O gato de Camões
certamente não se sobressaltou quando a vela morreu. O gato, este animal
vigilante, este ser atento que observa dormindo, continua a vigília de
conceder luz com o rosto do poeta iluminado pelo gênio.”
Uma obra de arte, especialmente boa (sei quanto isso é subjetivo), tem
essa potência do gato, da vela e do poeta. Um filme que une roteiro, direção,
atuação e edição é uma obra de arte nesse sentido. Um quadro, escultura,
música ou filme são gato porque são signo, representação. Na ausência da
vela, o gato brilha por ela. A arte não é somente aquilo que é representado
nela. É mais e é também a negação dela. Vamos a um exemplo concreto e
clássico. Magritte pintou um cachimbo em estilo catálogo de produtos e
escreveu, em letras escolares, embaixo: “Isto não é um cachimbo”. Sim! Não
é um cachimbo, mas uma representação, um símbolo do cachimbo. Assim
como Banville comentando Camões não é Camões. E Bachelard comentando
Banville, que comenta Camões, só aumenta a trilha de uma representação da
representação. Por outro lado, se não houvesse a legenda no quadro de
Magritte e perguntássemos a um transeunte o que ele vê na imagem,
dificilmente escutaríamos algo diferente de “um cachimbo”. Ou seja, o texto
nega a imagem, mas também nega a si próprio. Ele me diz que não se trata de
um cachimbo, mas eu vejo um cachimbo! Tampouco a legenda é um
cachimbo. Em quem acreditar? Essa talvez fosse a peça que o artista nos
pregava: quem tem mais autoridade? A coisa representada (o cachimbo), a
representação da coisa (a tela que mostra uma pintura de cachimbo, logo uma
imagem) ou o texto que nega que aquilo seja um cachimbo? Essas muitas
camadas da arte mostram seu poder de iluminar sem ser vela, mas gato; sem
ser a coisa em si, mas a representação da coisa.
Também podemos pensar a arte como vela, algo que ilumina nossa
solidão, nossa existência. Quantas vezes, um filme, livro, música ou obra
qualquer iluminou meandros escondidos de todos nós, locais que nem sequer
imaginávamos existir. Pode iluminar e nos transformar por meio dessa luz.