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O Dilema do Porco Espinho - Leandro Karnal

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vejamos quando a coisa não dá tão certo como planejado. Baseio-me no

trabalho de uma amiga, uma pesquisadora de excelência no tema, Maria

Cristina Bohn Martins. Ela encontrou a trajetória do Padre Lucas de Cueva,

jesuíta atuando na região do rio Amazonas no século XVII. Trabalhar ali, mais

uma vez lembrando do tom edificante dos escritos, trazia enormes

dificuldades, a solidão e as agruras do deserto. Deslocamento em terras

alagadiças ou em frágeis canoas que enfrentam as poderosas correntes dos

rios amazônicos, a fome (e a necessidade de consumir “imundices”) e o

incômodo da excessiva umidade e dos insetos. Um dia, sem poder sair de sua

canoa por estar tudo inundado à sua volta, teve que fazer suas necessidades

onde estava. Naquele momento, relata, “caiu meu pouco vigor [...] a ponto de

eu não mais conseguir me levantar”. Territórios limítrofes como o de

Maynas, província onde estava Cueva, implicavam condição excepcional,

passível de revelar fragilidades pessoais quase nunca evidentes na literatura

jesuítica. O sacerdote revela como sentiu, por vezes, os pelos se eriçarem e

como tremeu de pavor: “Caiu a noite e, com ela, horrorosas trevas de pavor,

que ocuparão os corações dos maynas [...] e também o meu. Eles falavam

baixo entre si [...] com voz tão triste e baixa [que...] parecia maquinarem algo

contra mim. Confesso os efeitos de minha fraqueza (...) fechava a boca [...]

para que não ouvissem meu bater de dentes. Levando minhas mãos à cabeça,

vi meus cabelos eriçados: meu coração tão possuído de temor e de sombras

fatais”. Como o exemplo do Padre Cueva, há muitos outros que mostram que

a solidão-abandono é o reverso possível da solidão contemplativa.

Ambas as formas de solidão religiosa, a do terror do abandono e a busca

por se abandonar, são aspectos essenciais e básicos em muitas tradições

religiosas. Na verdade, são o âmago, o mais íntimo da experiência religiosa. A

solidão fundou as maiores religiões e práticas religiosas. Buda encontrou a

iluminação solitário, debaixo de uma figueira. Jesus passou quarenta dias no

deserto. Maomé estava sozinho numa caverna quando Gabriel falou com ele

pela primeira vez. Moisés, só, recebeu os Dez Mandamentos. Várias outras

figuras importantes do texto, de Abraão a José, também encontram Deus e

seus desígnios em isolamento. Nas palavras do sacerdote católico e escritor

norte-americano Clair McPherson, “os grandes profetas do Velho

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