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atacarão e exporão suas entranhas físicas e psíquicas, não alcançará
descanso.
A Bíblia fala-nos do deserto. Já entendemos que a palavra em contexto
judaico-cristão é polissêmica. Mas, em qualquer de seus significados, sempre
é um palco da ação desse Deus do deserto, desse Deus da solidão. Em meio a
todas as possiblidades do deserto/solidão, ele/ela também se apresenta como
esse local de descanso com o qual o eremita sonha. O local de paz depois da
vitória sobre as forças do mal, sejam as de sua cabeça, sejam as do mundo. O
Evangelho de Marcos (6,31) nos revela que Deus pede que estejamos sós e
que, nessa condição, procuremos um lugar deserto para descansarmos um
pouco. O convite é feito. É quase um chamado, na verdade. Deus, portanto,
nos quer sozinhos, desertificados. Longe das tribulações do dia a dia, teremos
descanso.
Visitando mais uma vez o Antão da Legenda áurea, vemos Jacopo de
Varazze narrar uma passagem esclarecedora nesse sentido. Certa feita, um
abade acercou-se do santo ermitão e lhe perguntou o que deveria fazer para
viver melhor, para ser melhor. O ermitão respondeu: “Não confie na sua
própria justiça; domine seu ventre e sua língua; esqueça as coisas passadas”.
Depois, acrescentou: “Assim como os peixes morrem se ficam algum tempo
na terra, também os monges que ficam fora da sua cela e convivem com as
pessoas do mundo logo perdem a resolução que tomaram de viver em retiro”.
Ou seja, Antão preconizou o mesmo que Descartes séculos depois: desconfie
de si e de seu juízo. Essa é a dúvida fundamental. Diferentemente da lógica
cartesiana, contudo, Antão estava preocupado com a concupiscência, algo que
na teologia está ligado à cobiça natural da humanidade por bens e posses
mundanas, algo que seria consequência direta do pecado original. Tais
desejos primitivos e inerentes à nossa condição de pecadores produziriam
desordem dos nossos sentidos e de nossa razão. Por isso, devemos desconfiar
de nossa justiça, de nossos juízos. Podem ser simples frutos de nossos
desejos. A segunda postulação, dominar o ventre, está umbilicalmente
relacionada à primeira. O ventre constitui, pelo menos desde Platão, algo a
ser controlado. Como metáfora platônica, o ventre simboliza as vontades
populares, que se entregam a suas paixões de forma desarrazoada. Nesse