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O Dilema do Porco Espinho - Leandro Karnal

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atacarão e exporão suas entranhas físicas e psíquicas, não alcançará

descanso.

A Bíblia fala-nos do deserto. Já entendemos que a palavra em contexto

judaico-cristão é polissêmica. Mas, em qualquer de seus significados, sempre

é um palco da ação desse Deus do deserto, desse Deus da solidão. Em meio a

todas as possiblidades do deserto/solidão, ele/ela também se apresenta como

esse local de descanso com o qual o eremita sonha. O local de paz depois da

vitória sobre as forças do mal, sejam as de sua cabeça, sejam as do mundo. O

Evangelho de Marcos (6,31) nos revela que Deus pede que estejamos sós e

que, nessa condição, procuremos um lugar deserto para descansarmos um

pouco. O convite é feito. É quase um chamado, na verdade. Deus, portanto,

nos quer sozinhos, desertificados. Longe das tribulações do dia a dia, teremos

descanso.

Visitando mais uma vez o Antão da Legenda áurea, vemos Jacopo de

Varazze narrar uma passagem esclarecedora nesse sentido. Certa feita, um

abade acercou-se do santo ermitão e lhe perguntou o que deveria fazer para

viver melhor, para ser melhor. O ermitão respondeu: “Não confie na sua

própria justiça; domine seu ventre e sua língua; esqueça as coisas passadas”.

Depois, acrescentou: “Assim como os peixes morrem se ficam algum tempo

na terra, também os monges que ficam fora da sua cela e convivem com as

pessoas do mundo logo perdem a resolução que tomaram de viver em retiro”.

Ou seja, Antão preconizou o mesmo que Descartes séculos depois: desconfie

de si e de seu juízo. Essa é a dúvida fundamental. Diferentemente da lógica

cartesiana, contudo, Antão estava preocupado com a concupiscência, algo que

na teologia está ligado à cobiça natural da humanidade por bens e posses

mundanas, algo que seria consequência direta do pecado original. Tais

desejos primitivos e inerentes à nossa condição de pecadores produziriam

desordem dos nossos sentidos e de nossa razão. Por isso, devemos desconfiar

de nossa justiça, de nossos juízos. Podem ser simples frutos de nossos

desejos. A segunda postulação, dominar o ventre, está umbilicalmente

relacionada à primeira. O ventre constitui, pelo menos desde Platão, algo a

ser controlado. Como metáfora platônica, o ventre simboliza as vontades

populares, que se entregam a suas paixões de forma desarrazoada. Nesse

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