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O Dilema do Porco Espinho - Leandro Karnal

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eternamente. Na solidão e no desamparo da experiência última, a morte,

Cristo viveu em plenitude a absoluta humanidade, mas também a absoluta

divindade: só se tornou um Deus que tudo sabe quando deixou de sê-lo,

quando foi mais humano. A beleza dessa formulação encontra algum paralelo

no cinema, no filme Últimos dias no deserto, do diretor colombiano Rodrigo

García. Em uma morte silenciosa, Cristo vê o pôr do sol. Depois de

trespassado pela lança, um beija-flor quase toca sua face. Jesus chora.

Enquanto as lágrimas vertem torrencialmente de seus olhos, ele quase sorri.

Morre em seguida. Momento sublime no qual podemos inferir a única certeza

que Cristo pode ter tido em seu derradeiro momento: é que foi homem e que a

condição humana é uma condição também de natureza. A morte é tão

solitária e natural quanto o nascimento.

É hora de recapitularmos nosso raciocínio antes de darmos mais passos.

Vimos que existe uma tradição judaico-cristã da solidão. É quando estão

sozinhas que personagens importantes, como patriarcas e profetas, têm

sonhos, presságios, conversam com Deus e recebem Dele alguma iluminação.

Normalmente, essa condição de isolamento está associada ao deserto. Na

aridez sem vida das areias escaldantes, em jejum, que o solitário homem de

fé procura equilíbrio, expurgo das coisas maléficas e apego à palavra do

Senhor. Estar sozinho é estar com Deus ou em busca Dele, e o deserto passa a

ser local de meditação, repouso, conforto, milagres e sinais. Mas também

vimos outro lado do deserto e da solidão: a loucura, as privações, os

tormentos são explorados pelo Demônio, que tenta o solitário. Vencer o

inimigo em terras inóspitas é triunfo da fé e é visto com júbilo. Portanto, o

retiro espiritual tem algo de provação, teste. O Deuteronômio (8,2-3) é claro

quando diz que foi o próprio Deus quem guiou seu povo no deserto por

quarenta anos, com o intuito aberto de humilhá-lo, prová-lo, para saber o

que estava em seu coração, se guardaria ou não os mandamentos. É sempre

curioso imaginar por que um Deus onisciente precisa submeter pessoas a

tamanha provação para daí, sim, saber o que se passa na mente delas. O

inequívoco é que as ideias de isolamento, solidão, provação, provação e

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