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O Dilema do Porco Espinho - Leandro Karnal

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vida, por conta desses poucos momentos, vale ser vivida repetidas vezes?

Escrevi em uma crônica de jornal sobre os últimos momentos na Terra. Lá,

lembrei o quadro de James Jacques Tissot, que retratou o Calvário sob ângulo

novo: a cena vista pelos olhos de Jesus (Ce que voyait Notre-Seigneur sur la

Croix, Brooklyn Museum, Nova York). Procure essa imagem e você será

apresentado a uma interpretação pouco comum. Em vez de um Jesus

centralizado, um que não está na cena (a não ser por um detalhe dos pés)

determina o horizonte de visão. Assumimos a posição dEle. A morte na cruz

era excruciante pela dor; terrível pela humilhação de tormento típico de

escravo e, para piorar, era a chance para o Messias avaliar a natureza humana

que não cessa de surpreender pela pusilanimidade. Somos todos canalhas e,

invariavelmente, covardes. E Ele amou os homens apesar do que via.

Durante todas as excruciantes horas na cruz, Jesus falou apenas sete frases

registradas nos Evangelhos canônicos. Pediu perdão aos presentes,

demonstrando seu amor incondicional; apresentou Maria como mãe de João,

para que ele cuidasse dela; respondeu ao bom ladrão que ele estaria consigo

no Paraíso ainda naquele fatídico dia. E então as frases mais humanas e

menos divinas (ou mais divinas, dependendo de como se lê). Jesus anuncia

que tem sede, bebe vinagre e diz que está tudo consumado. Em seu derradeiro

e mais solitário momento, teve dúvida e perguntou ao Pai por que Ele o

abandonara (registrada em dois evangelistas). Também disse que entregava

seu espírito ao Pai. E expirou. O desamparo da solidão, o estar sozinho contra

a vontade. Que humanidade exemplar!

Slavoj Žižek leu essa frase, a do abandono, do sentimento dolorido da

solidão, de um jeito interessante. Para o filósofo, o Deus cristão, dentre todos

os deuses que postulam para si a ideia da onisciência, é o único que pode

realmente afirmar que o é, pois experimentou a morte. Deus morreu na cruz,

de forma banal e comum. Sem essa experiência, os demais deuses podem

apenas dizer que tudo conhecem em teoria. Apenas Cristo experimentou a

morte na prática. A frase “Pai, por que me abandonaste?” nos relembra de que

estamos diante de um Deus encarnado, que reconhece, naquele exato

momento, que perdera sua divindade. Sem um Pai onipotente para salvá-lo,

Deus foi mundano e comum, pois nenhum de nós se esquiva da morte

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