21.11.2021 Views

O Dilema do Porco Espinho - Leandro Karnal

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

seria o modelo para os ermitãos, como Antão. Enfrentar o demônio e vencêlo

ou bater-se com seus próprios demônios em meio ao retiro desértico.

Nesse último sentido, seria como ficarmos completamente nus, com boa luz,

bem próximos de um espelho. É melhor fazermos isso sozinhos. De perto,

ninguém é normal, e nossas imperfeições saltariam à vista. Podemos ignorar

nossas falhas ou nos horrorizar com elas, tanto faz. O ascetismo cristão

eremita diz que o deserto funciona para o solitário como o espelho em que

nos desnudamos. Não à toa, na versão que Dali pintou, Santo Antão aparece

desnudo, combatendo demônios e tentações em formas paquidérmicas e

equinas. O deserto, a nudez da alma e a fortaleza de Cristo, simbolizada pelo

crucifixo nas mãos do santo, compõem a virtude da cena feita pelo espanhol

já no século XX. O deserto da solidão é inequivocamente um lugar de

provação. Jesus (e Antão depois dele) preferiu nutrir-se das Escrituras:

“Resista ao inimigo e ele fugirá de vós”, cravou o apóstolo Tiago em carta.

Abandonemos o deserto cristão para acompanharmos Jesus em outro

momento de solidão e de intensa humanidade. O que se passava na cabeça do

Messias na quarta-feira da Semana Santa? Havia experimentado a maior

glória da sua vida no domingo anterior, quando fora saudado com hosanas ao

entrar na sagrada e tumultuada Jerusalém. As portas da cidade se abriram de

par em par. Mantos foram estendidos no chão, ramos de oliveira, agitados em

frenesi. Foi o apogeu de uma carreira de três anos. Ele conhecia a cidade há

muito tempo. Perdeu-se nela aos 12 anos. Jerusalém, a dourada, com o

templo refeito por Herodes, o Grande, deveria impressionar um homem

nascido em Belém e criado na pacata Nazaré.

Jesus amava a Cidade Santa. Em Lucas (19,41-44), lemos que ele chorou ao

ver a capital e antecipar sua destruição. Era uma paixão de verdade: sua

maior crise de fúria tinha sido expulsar vendilhões do espaço sagrado. O gesto

indicava seu zelo afetivo pelo lugar. Ninguém reconheceria o dócil pregador

do Sermão da Montanha virando mesas e gritando. Talvez os íntimos

conseguissem vislumbrar além: a cena impactante nascia do amor do Filho

pela casa do Pai.

Quarta-feira, mês de Nisã no calendário judaico, primavera na cidade

dourada. Dias mais frescos, céu azul, a temperatura mais amena de uma urbe

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!