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O Dilema do Porco Espinho - Leandro Karnal

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Comer e beber, na tradição católica dos pecados capitais, são apenas indício

de todos os tipos de desejos (logo vícios) físicos.

Viesse uma oferta de vinho, água, embutidos e queijos, e hedonistas

contemporâneos teriam abraçado pedras, pedregulhos e rochas. Cerveja

gelada, um refrigerante ou um milk-shake convenceriam outros tantos.

Sabendo que Jesus era frugal, o Diabo sugeriu pão. A tentação do próprio

Jesus é um dos episódios mais interessante sobre o papel demoníaco no Novo

Testamento. Está sempre à espreita, possui pessoas, animais, ameaça tomar o

mundo. Sua ousadia não encontra paralelo, porém, como diante dessa

passagem de Jesus no deserto. O que esperava o demônio ao tentar o Filho do

Homem? Encurtar uma história que ele sabe que perderá? Como enredo

contemporâneo, a Bíblia tem spoilers. Nem sempre há tensão narrativa, pois

sabemos que o bem triunfa sobre o mal depois de milhares de anos que

começam com uma peleja no céu e terminam com a ascensão da Segunda

Jerusalém.

Pois o Diabo leva uma invertida do solitário Jesus, que reafirma a

passagem do Deuteronômio: “Está escrito: nem só de pão viverá o homem,

mas de toda palavra que sai da boca de Deus”. Se o demônio começa a

primeira tentação com uma partícula condicional, colocando em suspeição a

natureza do Salvador dos cristãos, a resposta de Jesus é taxativa: está escrito.

“Verba volant scripta manent”, diz o adágio latino. “As palavras voam ao

vento”, como na música de Bob Dylan, mas a escrita permanece, desafiando

os tempos e as eventuais falhas de memória. O Diabo tratou Jesus como

fazemos quando queremos que pessoas inseguras em busca de afirmação

façam coisas por nós. Vejamos a situação concreta. Estou com um grupo de

amigos que, todos os fins de semana, se reúnem em um estádio de futebol

para ver nosso time jogar. Hoje, um colega novo no grupo veio conosco. É sua

terceira vez num grupo que já tem intimidade há tempos. Ele está inseguro,

sedento por se sentir parte da matilha, mas ainda não está plenamente

integrado, não conhece as brincadeiras e as músicas que entoamos. Logo após

nosso time tomar um gol, fruto de um pênalti inventado pelo árbitro, desejo

muito caluniar a família do homem com o apito. Acontece que o juiz em

questão também é meu chefe. Cidade pequena, futebol de várzea. Dizer o que

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