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O Dilema do Porco Espinho - Leandro Karnal

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Esse sentido de crescimento pressupõe entender o deserto, então, como uma

etapa de preparação, na qual o Senhor endireitará nossas veredas (Lc 3,4).

Jacopo de Varazze autor da Legenda áurea, ao retratar a vida de um santo

bem menos conhecido na atualidade, Arsênio, ponderou que a multidão

impede alguém de ver seus próprios pecados, enquanto aqueles que vivem na

solidão podem vê-los com mais facilidade. Ver os próprios defeitos com

exatidão, tomar ciência de cada problema que temos, seria o primeiro passo

para erradicá-los. Os seres humanos não são perfeitos, mas são perfectíveis.

A busca pela melhora de si começa com a solidão do deserto no raciocínio

religioso. Tanto era assim que, no latim medieval, desertum não era apenas o

designativo de uma área inóspita; também era sinônimo de solidão, de retiro

espiritual, da procura por Deus e de combate às forças do maléfico. Segundo o

medievalista Jacques Le Goff, o deserto da Idade Média poderia ocorrer em

quaisquer condições geográficas, pois era metáfora. Um mar, uma ilha, uma

floresta, um pico de montanha: qualquer lugar de isolamento podia ser

descrito com a palavra desertum.

Essa leitura da solidão como elemento necessário ao crescimento e à

nutrição do espírito, como abnegação do corpo, tem muita base no Antigo

Testamento, mas encontra em Jesus a sua essência. No Evangelho de Mateus,

há uma passagem extremamente conhecida na qual o próprio Cristo se isola

logo após seu batismo. O Nazareno quer se preparar para seu ministério,

antecipando seus sofrimentos e ponderando seu maciço dever. Para isso, diz o

texto bíblico, foi conduzido pelo Espírito ao deserto e lá permaneceu por

quarenta dias, numa referência aos quarenta anos que o povo escolhido

perambulou no Sinai antes de atingir a Terra Prometida. Jesus, com sua

passagem pela Terra, sua morte e ressurreição, traria acesso a todos a esse

novo reino (que não é deste mundo) da Salvação. Depois de jejuar por todo

esse tempo, sentiu-se fraco e teve fome. Jesus era um forte. A maioria de nós

costuma dizer que está morrendo de fome com apenas algumas horas sem

comer. Nesse momento de baixa, o Tentador apareceu e ofereceu uma chance

de matar aquela necessidade física: “Se tu és Filho de Deus, manda que estas

pedras se tornem em pães”. A primeira tentação está intimamente ligada ao

corpo e suas necessidades básicas. Diz respeito à concupiscência da carne.

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