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Em primeiro lugar, o óbvio. Paisagens desérticas contrastam com a
abundância das margens dos rios no chamado Crescente Fértil, região na qual
a presença humana é antiquíssima e que se espraia desde a foz do Nilo, no
Egito, até a Mesopotâmia, passando pelo Jordão. Nesse jogo de polos entre a
cornucópia criada pelas águas e seus regimes de cheia, e o agreste violento e
quase sem vida dos desertos que estão por todos os lados entre o norte da
África e o Oriente Médio, é possível ler uma clara representação do vício e da
virtude. Por um lado, prega a tradição rabínica, estar próximo de Deus traz
virtude e fartura. Por outro, afastar-se dele traz seca e privação. Basta ler um
profeta do Velho Testamento, e teremos exemplo deste ciclo: Deus provê
muito aos seus filhos mais fiéis; estes param de adorar a fonte e passam a
idolatrar o veio da água em si; ao amarem o supérfluo, o mundano, afastamse
de Deus, que, por fim, pune as pessoas retirando-lhes alimentos,
colheitas, filhos, atirando-lhes em cativeiros, permitindo invasões e o que
mais for necessário para que vejam sua apostasia e se arrependam dela.
Temendo o Senhor, voltam ao seu seio, e as bênçãos divinas voltam a cobrilos.
Esse é o ciclo que anunciam as profecias.
Nessa lógica, o deserto simbolizaria o afastamento de Deus. Volto à
pergunta: Por que Antão foi buscá-Lo no deserto? Será que buscava
realmente a presença divina? Afastar-se de Deus e criar um deserto na alma é
apenas um dos muitos significados do ermo. Uma solidão sem Deus é algo
que não se deseja na tradição. Mas a Bíblia é plena de outros sentidos para os
mesmos desertos. Vamos pensar sobre alguns deles. Ainda na tradição
veterotestamentária, podemos perceber que o deserto é também um lugar de
escuta. Em meio ao Sinai, Deus falou a Moisés, fez seu povo eleito peregrinar
e deu-lhes a “Lei”, os Dez Mandamentos. No árido, Israel congregou a todos
no tabernáculo, local de habitação do próprio Deus entre seu povo. Guiados
pela vontade divina, seus filhos mais diletos foram ao deserto. Lá, foram
despidos de tudo e todos, apenas para ouvirem Suas vontades e mandatos. O
profeta Oseias resumiu isso quando escreveu: “Eis que eu a atrairei, e a
levarei para o deserto, e lhe falarei ao coração”, quando admoesta um fiel
falando de sua mãe prostituta (Os 2,14).
Para um povo nômade, combatido e escravizado tantas vezes, o deserto