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O Dilema do Porco Espinho - Leandro Karnal

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Em primeiro lugar, o óbvio. Paisagens desérticas contrastam com a

abundância das margens dos rios no chamado Crescente Fértil, região na qual

a presença humana é antiquíssima e que se espraia desde a foz do Nilo, no

Egito, até a Mesopotâmia, passando pelo Jordão. Nesse jogo de polos entre a

cornucópia criada pelas águas e seus regimes de cheia, e o agreste violento e

quase sem vida dos desertos que estão por todos os lados entre o norte da

África e o Oriente Médio, é possível ler uma clara representação do vício e da

virtude. Por um lado, prega a tradição rabínica, estar próximo de Deus traz

virtude e fartura. Por outro, afastar-se dele traz seca e privação. Basta ler um

profeta do Velho Testamento, e teremos exemplo deste ciclo: Deus provê

muito aos seus filhos mais fiéis; estes param de adorar a fonte e passam a

idolatrar o veio da água em si; ao amarem o supérfluo, o mundano, afastamse

de Deus, que, por fim, pune as pessoas retirando-lhes alimentos,

colheitas, filhos, atirando-lhes em cativeiros, permitindo invasões e o que

mais for necessário para que vejam sua apostasia e se arrependam dela.

Temendo o Senhor, voltam ao seu seio, e as bênçãos divinas voltam a cobrilos.

Esse é o ciclo que anunciam as profecias.

Nessa lógica, o deserto simbolizaria o afastamento de Deus. Volto à

pergunta: Por que Antão foi buscá-Lo no deserto? Será que buscava

realmente a presença divina? Afastar-se de Deus e criar um deserto na alma é

apenas um dos muitos significados do ermo. Uma solidão sem Deus é algo

que não se deseja na tradição. Mas a Bíblia é plena de outros sentidos para os

mesmos desertos. Vamos pensar sobre alguns deles. Ainda na tradição

veterotestamentária, podemos perceber que o deserto é também um lugar de

escuta. Em meio ao Sinai, Deus falou a Moisés, fez seu povo eleito peregrinar

e deu-lhes a “Lei”, os Dez Mandamentos. No árido, Israel congregou a todos

no tabernáculo, local de habitação do próprio Deus entre seu povo. Guiados

pela vontade divina, seus filhos mais diletos foram ao deserto. Lá, foram

despidos de tudo e todos, apenas para ouvirem Suas vontades e mandatos. O

profeta Oseias resumiu isso quando escreveu: “Eis que eu a atrairei, e a

levarei para o deserto, e lhe falarei ao coração”, quando admoesta um fiel

falando de sua mãe prostituta (Os 2,14).

Para um povo nômade, combatido e escravizado tantas vezes, o deserto

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