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O Dilema do Porco Espinho - Leandro Karnal

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permitido, havendo outra forma de lidar com a verdade que não a racional,

mais limitada. Nas cenas das As tentações de Santo Antão, a solidão, a

penitência, as privações atraem demônios, e todo um mundo aterrador se

descortina. Jaz aí o fascínio maior da cena: o santo não vira, simplesmente, o

rosto para a tentação ou fecha os olhos, rezando para que desapareça. Como

no texto da Legenda áurea, ele enfrenta os demônios. Na sensibilidade

medieval, o combate era físico. No início da Idade Moderna, Bosch não retrata

uma luta corpórea, mas um estar no mundo, uma fascinação por ver o pecado

e não participar dele. Em Pecar e perdoar, falei da leitura de Flaubert sobre

essa sensação e de como o orgulho se esgueira sorrateiro na alma do santo.

No Masp, talvez seja minha imaginação solitária, mas é possível ver um

leve esgar em Antão. Foucault enxergou o mesmo leve e frágil sorriso em

Lisboa. Em meio ao que parece um pesadelo, o santo de Bosch permanece

acordado, quase feliz. A tentação vira uma espécie de desejo, uma loucura que

dá poder ao eremita, pois o impossível aos reles mortais, o fantástico e o

sobrenatural que são revelados ao santo, atrai os olhos do venerável, dá-lhe

um estranho mas compreensível prazer. Sozinho em um deserto densamente

povoado, Antão é livre. Livre das tentações à sua volta. Venceu-as. A

liberdade pode parecer apavorante, pois abre as celas de sonhos e fantasmas,

os mais insanos e ocultos do ser humano. Para alguém do século XV ou XVI,

porém, esses poderes atraíam muito.

Por que viver no deserto? Por que não simplesmente buscar a Deus em um

lugar mais aprazível? Se a ideia era ficar sozinho para rezar e meditar, Antão

poderia ter escolhido ficar embaixo de uma árvore, como Sidarta o fez (e

Bosch chegou a projetar). Se a ideia era resistir às tentações para se deliciar

com o fato de vencê-las, não bastaria visitar o babilônico centro de uma

metrópole qualquer? Para tentar responder a essas questões, precisamos

pensar no que a ideia de deserto simbolizava na tradição judaico-cristã. O

deserto e sua possível solidão estão muito além de Bosch e Antão. A solidão

que Deus urge de seus seguidores é anterior e formou o imaginário de ambos

os personagens, ainda que de maneiras distintas.

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