You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
CAPÍTULO 4
O Deus da solidão
Gosto muito de museus. Por vezes, vou com amigos ou alunos e sempre me
entretenho. Todavia, é o hábito solitário de percorrer galerias, ficando horas
diante de obras que chamam minha atenção, o que realmente me motiva
nessas visitas. Em certas ocasiões no Masp, me vi diante de uma pintura de
Bosch sobre as tentações de Santo Antão. A cena em óleo sobre madeira é de
uma beleza terrível. Foi feita pelo mestre muito provavelmente como um
estudo ou versão anterior da cena central de um tríptico sobre o eremita que
está em Lisboa. Mais de quinhentos anos atrás, Bosch imaginou a solidão de
Antão em seu momento mais impactante.
Antão teria vivido no Egito, um importante centro do Cristianismo
primitivo, no século III. Querendo contemplar as verdades de sua religião,
decidiu retirar-se por completo da vida em sociedade e escolheu viver só, no
ermo. Segundo a Legenda áurea, um texto medieval que certamente o pintor
holandês leu ou com o qual teve contato, Antão tinha por volta de 20 anos
quando abandonou o “século”, ou seja, sua vida mundana, e se retirou ao
deserto. Livrou-se de todos os seus bens, doando-os aos pobres. Passaria boa
parte de seus dias, dali em diante, ajudando outros religiosos, rezando, lendo
o texto sagrado, meditando e combatendo demônios e tentações. Superou o
desejo de fornicação e viu o seu diabo, que se apresentou na forma de um
menino negro, confessando-se vencido pelo santo. Recusou prata e ouro em
abundância, também ofertas generosas, mas inúteis, de demônios que
queriam sua alma. Outros asseclas infernais ofereciam-lhe comida, impediam
que anjos lhe carregassem pelos céus e nublavam suas visões. Antão