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de arrumar o quarto da empregada que se demitira, deflagra um processo de
autoanálise visceral. A empregada, que como acontece em geral é “invisível”
para sua patroa, uma desconhecida, apesar de ter convivido com ela por seis
meses, causa-lhe certa irritação ao deixar registrado numa das paredes do
quarto modesto o desenho em preto de um homem e uma mulher nus
juntamente com um animal. Provocada, imaginando ser o desenho um
julgamento de sua pessoa, ao abrir um armário depara-se, para seu horror,
com uma barata. Tomada de asco indescritível, mata o inseto, porém,
atingida nas profundezas de seu ser, decide comer a barata com as vísceras à
mostra. A descrição do líquido branco que escapa do corpo partido do inseto é
repugnante, mas para a personagem é comparado ao leite materno e é um
desafio à sua iniciação, à travessia que terá que fazer para levar a cabo o rito
de passagem. Talvez, como artista, a massa líquida, vida escorrendo para
dentro de si, vá esculpindo o nome buscado. Ao comer a barata, parece comer
a si própria, verdadeira autofagia, para uma renovação de seu ser. Nesse
exato momento, ocorre a epifania, há todo um simbolismo sagrado da
revelação do eu. G.H., sem um nome por extenso para identificá-la até então,
provavelmente as iniciais representando o gênero humano, portanto qualquer
um, assume-se, passa a ser; a morte do inseto suscita sua paixão, seu
sacrifício. Algo mudou radicalmente, na solitude desvelada tem a consciência
da transformação ocorrida, agora ela É. Morreu o ser anterior para
possibilitar o nascimento do novo.
Dezenas e dezenas de vidas solitárias estão nas páginas da literatura.
Isolamentos conscientes, impostos, vingativos, reflexivos, produtivos,
enlouquecedores, desafiadores e todas as possibilidades que você conseguir
imaginar. Selecionei alguns exemplos, outros, importantes, ficaram de fora. O
desafio foi retratar histórias e retratos de personagens que pudessem mostrar
como é fascinante conjugar a sua solidão com a criatividade dos autores. Cada
descrição aqui contida pode trazer uma luz, pensando que, talvez, sua dor não
seja tão forte ou que possa ser sublimada, denegada, transformada ou aceita
por outro ângulo. Há personagens para fugir ou imitar: todos são didáticos
para iluminar nossas ambiguidades. E, mesmo que a loucura de Ahab ou a
consciência angustiada de G.H. não toque sua alma, resta sempre o prazer de