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O Dilema do Porco Espinho - Leandro Karnal

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de arrumar o quarto da empregada que se demitira, deflagra um processo de

autoanálise visceral. A empregada, que como acontece em geral é “invisível”

para sua patroa, uma desconhecida, apesar de ter convivido com ela por seis

meses, causa-lhe certa irritação ao deixar registrado numa das paredes do

quarto modesto o desenho em preto de um homem e uma mulher nus

juntamente com um animal. Provocada, imaginando ser o desenho um

julgamento de sua pessoa, ao abrir um armário depara-se, para seu horror,

com uma barata. Tomada de asco indescritível, mata o inseto, porém,

atingida nas profundezas de seu ser, decide comer a barata com as vísceras à

mostra. A descrição do líquido branco que escapa do corpo partido do inseto é

repugnante, mas para a personagem é comparado ao leite materno e é um

desafio à sua iniciação, à travessia que terá que fazer para levar a cabo o rito

de passagem. Talvez, como artista, a massa líquida, vida escorrendo para

dentro de si, vá esculpindo o nome buscado. Ao comer a barata, parece comer

a si própria, verdadeira autofagia, para uma renovação de seu ser. Nesse

exato momento, ocorre a epifania, há todo um simbolismo sagrado da

revelação do eu. G.H., sem um nome por extenso para identificá-la até então,

provavelmente as iniciais representando o gênero humano, portanto qualquer

um, assume-se, passa a ser; a morte do inseto suscita sua paixão, seu

sacrifício. Algo mudou radicalmente, na solitude desvelada tem a consciência

da transformação ocorrida, agora ela É. Morreu o ser anterior para

possibilitar o nascimento do novo.

Dezenas e dezenas de vidas solitárias estão nas páginas da literatura.

Isolamentos conscientes, impostos, vingativos, reflexivos, produtivos,

enlouquecedores, desafiadores e todas as possibilidades que você conseguir

imaginar. Selecionei alguns exemplos, outros, importantes, ficaram de fora. O

desafio foi retratar histórias e retratos de personagens que pudessem mostrar

como é fascinante conjugar a sua solidão com a criatividade dos autores. Cada

descrição aqui contida pode trazer uma luz, pensando que, talvez, sua dor não

seja tão forte ou que possa ser sublimada, denegada, transformada ou aceita

por outro ângulo. Há personagens para fugir ou imitar: todos são didáticos

para iluminar nossas ambiguidades. E, mesmo que a loucura de Ahab ou a

consciência angustiada de G.H. não toque sua alma, resta sempre o prazer de

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