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O Dilema do Porco Espinho - Leandro Karnal

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estamos irmanados pela própria condição humana. Estrangeiros do usual,

distantes do comum, produzimos o afastamento necessário para criar

consciência. Talvez esteja aqui a chave de a leitura ser tão boa para o fato de

estar sozinho: ela cria personagens internos e cria um outro em nós mesmos,

como queria Kristeva, de tal forma que somos cercados de pequena multidão

interna.

A solidão enunciada na literatura pode ser de várias naturezas. Ela pode

decorrer da ânsia pelo poder, como é o caso do personagem Macbeth, na

tragédia de mesmo nome, de William Shakespeare. Macbeth, instado por sua

mulher, Lady Macbeth, mata o rei Duncan e vários outros personagens que

lhe atravessam o caminho rumo ao trono da Escócia. Trilhando a estrada da

morte, passa a peça inteira dialogando com fantasmas de suas vítimas. A

ambiciosa Lady Macbeth também vive isolada em seu desespero, tentando em

vão lavar as mãos do sangue de Duncan, que em seu leito de morte lhe

recordara o próprio pai. Outro aspecto a considerar é que o casal, que parecia

ter uma relação de interação amorosa-sexual, após o primeiro grande delito

começa a experimentar afastamento e perda de contato satisfatório, passando

a ser apenas cúmplice de crimes e mergulhando, aos poucos, em um delírio

povoado de espectros de suas consciências. Macbeth “matou o sono”, e Lady

Macbeth percorre o palácio e acaba buscando a morte, propositalmente ou

não, ao despencar de uma torre.

O personagem Hamlet ilustra a solidão da consciência exacerbada do

príncipe da Dinamarca. Espírito inteligente, culto e sensível, ele demora para

agir em relação ao rei Cláudio, seu tio e assassino do próprio irmão. Sua

indecisão é fruto da incessante ponderação pela busca da verdade, isto é, se o

fantasma que lhe aparecera na torre seria mesmo o antigo rei clamando por

vingança ou apenas um espírito amaldiçoado tentando levá-lo à danação

eterna. Hamlet é tão isolado em si mesmo, analista implacável de suas

atitudes e de seus anseios, bem como da conduta dos demais personagens da

tragédia, que uma decepção profunda assalta seus mais nobres sentimentos:

o amor que sente por Ofélia é frustrado pela constatação de que ela é um

instrumento débil nas mãos de seu pai, o ambicioso e tolo Polônio; Gertrudes,

a rainha, não inspira a Hamlet amor filial genuíno, pois para o príncipe sua

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