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estamos irmanados pela própria condição humana. Estrangeiros do usual,
distantes do comum, produzimos o afastamento necessário para criar
consciência. Talvez esteja aqui a chave de a leitura ser tão boa para o fato de
estar sozinho: ela cria personagens internos e cria um outro em nós mesmos,
como queria Kristeva, de tal forma que somos cercados de pequena multidão
interna.
A solidão enunciada na literatura pode ser de várias naturezas. Ela pode
decorrer da ânsia pelo poder, como é o caso do personagem Macbeth, na
tragédia de mesmo nome, de William Shakespeare. Macbeth, instado por sua
mulher, Lady Macbeth, mata o rei Duncan e vários outros personagens que
lhe atravessam o caminho rumo ao trono da Escócia. Trilhando a estrada da
morte, passa a peça inteira dialogando com fantasmas de suas vítimas. A
ambiciosa Lady Macbeth também vive isolada em seu desespero, tentando em
vão lavar as mãos do sangue de Duncan, que em seu leito de morte lhe
recordara o próprio pai. Outro aspecto a considerar é que o casal, que parecia
ter uma relação de interação amorosa-sexual, após o primeiro grande delito
começa a experimentar afastamento e perda de contato satisfatório, passando
a ser apenas cúmplice de crimes e mergulhando, aos poucos, em um delírio
povoado de espectros de suas consciências. Macbeth “matou o sono”, e Lady
Macbeth percorre o palácio e acaba buscando a morte, propositalmente ou
não, ao despencar de uma torre.
O personagem Hamlet ilustra a solidão da consciência exacerbada do
príncipe da Dinamarca. Espírito inteligente, culto e sensível, ele demora para
agir em relação ao rei Cláudio, seu tio e assassino do próprio irmão. Sua
indecisão é fruto da incessante ponderação pela busca da verdade, isto é, se o
fantasma que lhe aparecera na torre seria mesmo o antigo rei clamando por
vingança ou apenas um espírito amaldiçoado tentando levá-lo à danação
eterna. Hamlet é tão isolado em si mesmo, analista implacável de suas
atitudes e de seus anseios, bem como da conduta dos demais personagens da
tragédia, que uma decepção profunda assalta seus mais nobres sentimentos:
o amor que sente por Ofélia é frustrado pela constatação de que ela é um
instrumento débil nas mãos de seu pai, o ambicioso e tolo Polônio; Gertrudes,
a rainha, não inspira a Hamlet amor filial genuíno, pois para o príncipe sua