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O Dilema do Porco Espinho - Leandro Karnal

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atenção dos pais ou quaisquer outras pessoas ao redor e, mais tarde, um

pouco maior, quando conversa com amiguinhos imaginários. Comum

também é encontrar adultos que moram sozinhos dialogando em voz alta

com os próprios pensamentos. É tão difícil para o homem permanecer

solitário, em silêncio, que ao fazer orações, por exemplo, sente urgência em

proferi-las de forma audível. Só a mente mais preparada e treinada consegue

meditar ou orar introspectivamente, sem se deixar embotar pelo sono.

Estamos viciados na poluição sonora que teme ouvir os próprios

pensamentos, daí ligar vários aparelhos ao mesmo tempo para abafar os

gritos da consciência. Não há como fugir da constatação de que quanto mais

consciente for, mais solitário se sentirá. Em um mundo de abundante

comunicação escrita, jamais fomos tão ilhados em nós mesmos como agora. A

leitura de bons livros que possibilitaria conhecimento, introspecção

inteligente e boa companhia vem perdendo adeptos. Já pensou que a

literatura pode provocar alargamento de horizontes, experiências vibrantes e

deleites intelectuais? Diante de um livro aberto, colocamo-nos como viajantes

prestes a embarcar em um porto de possibilidades, sem nunca sermos

assaltados pela solidão durante a viagem, mesmo que o livro narre a solidão

do personagem. Afinal, a sensação de participação na história estabelece

intimidade, e intimidade só é sentida em companhia. A abertura do coração

do personagem provoca abertura de nosso próprio coração, transformamonos

em espelhos de suas emoções, que reverberam tão profundamente em

nós que perdemos a noção de espaço e tempo reais e somos levados, em

virtude do processo de identificação com o personagem, à catarse de aspectos

de nosso eu mais secreto. A literatura possibilita a chamada experiência

vicária, pois, ao entrarmos em contato com as experiências dos personagens,

atravessamos fronteiras desconhecidas de nós mesmos. O outro, o estranho, o

“estrangeiro” do livro, deflagra o estranho, o “estrangeiro” em nós, e ao

reconhecer sua presença passamos a conhecer o que estava velado em nós e

constatamos que somos todos estrangeiros em um processo contínuo de

autoconhecimento, processo esse que se prolonga até a morte. Julia Kristeva,

a intelectual búlgara-francesa, afirma sermos “étrangers à nous-mêmes”,

isto é, “estrangeiros a nós mesmos” e, paradoxalmente, não sermos, pois

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