You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
atenção dos pais ou quaisquer outras pessoas ao redor e, mais tarde, um
pouco maior, quando conversa com amiguinhos imaginários. Comum
também é encontrar adultos que moram sozinhos dialogando em voz alta
com os próprios pensamentos. É tão difícil para o homem permanecer
solitário, em silêncio, que ao fazer orações, por exemplo, sente urgência em
proferi-las de forma audível. Só a mente mais preparada e treinada consegue
meditar ou orar introspectivamente, sem se deixar embotar pelo sono.
Estamos viciados na poluição sonora que teme ouvir os próprios
pensamentos, daí ligar vários aparelhos ao mesmo tempo para abafar os
gritos da consciência. Não há como fugir da constatação de que quanto mais
consciente for, mais solitário se sentirá. Em um mundo de abundante
comunicação escrita, jamais fomos tão ilhados em nós mesmos como agora. A
leitura de bons livros que possibilitaria conhecimento, introspecção
inteligente e boa companhia vem perdendo adeptos. Já pensou que a
literatura pode provocar alargamento de horizontes, experiências vibrantes e
deleites intelectuais? Diante de um livro aberto, colocamo-nos como viajantes
prestes a embarcar em um porto de possibilidades, sem nunca sermos
assaltados pela solidão durante a viagem, mesmo que o livro narre a solidão
do personagem. Afinal, a sensação de participação na história estabelece
intimidade, e intimidade só é sentida em companhia. A abertura do coração
do personagem provoca abertura de nosso próprio coração, transformamonos
em espelhos de suas emoções, que reverberam tão profundamente em
nós que perdemos a noção de espaço e tempo reais e somos levados, em
virtude do processo de identificação com o personagem, à catarse de aspectos
de nosso eu mais secreto. A literatura possibilita a chamada experiência
vicária, pois, ao entrarmos em contato com as experiências dos personagens,
atravessamos fronteiras desconhecidas de nós mesmos. O outro, o estranho, o
“estrangeiro” do livro, deflagra o estranho, o “estrangeiro” em nós, e ao
reconhecer sua presença passamos a conhecer o que estava velado em nós e
constatamos que somos todos estrangeiros em um processo contínuo de
autoconhecimento, processo esse que se prolonga até a morte. Julia Kristeva,
a intelectual búlgara-francesa, afirma sermos “étrangers à nous-mêmes”,
isto é, “estrangeiros a nós mesmos” e, paradoxalmente, não sermos, pois