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O Dilema do Porco Espinho - Leandro Karnal

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no mundo real. Come pedindo on-line, conversa teclando, interage curtindo

ou bloqueando. As trocas sociais face a face não são mediadas. Digo uma coisa

e não tenho exata certeza do que meu interlocutor pode me responder. O

friozinho na barriga da primeira aula, do primeiro encontro, vencer a timidez

e a insegurança na entrevista de emprego: todas essas experiências

mostram-nos como é inseguro viver no mundo real. É incontrolável, pois

dependo do outro. No mundo virtual, as telas do computador ou smartphone

servem de mediação. Escolho quando e o que ver (ou o algoritmo escolhe tudo

o que dói menos). Fica difícil dizer de forma muito direta, mas a companhia

real é boa porque ela é diferente de mim. A presença do outro, seja um

familiar, seja um amigo, seja qualquer pessoa íntima, estabelece uma prova

complexa. Se eu dissesse de forma mais direta, a companhia é boa porque

causa certa dor. Na dor encontro algo novo, um limite, um conhecimento a

mais, o grão de areia que a ostra pode transformar em pérola. Conviver com a

diferença e administrar o atrito inevitável é um ato de maturidade. Ser

contrariado, questionado, posto em suspeição, rejeitado, desde que não sejam

as únicas experiências que conheça, criam resiliência, moldam personalidade,

caráter. O filtro bolha impede tudo isso.

Eis o segundo passo: a supressão do ser no mundo, do indivíduo que é

exposto às interações sociais normais, leva à criação de dois monstrengos.

Um avatar, uma nova identidade virtual, que normalmente projeta aquilo que

desejo ser, num mundo que controlo. O segundo Frankenstein brota desse

duplo criado: a supervalorização do “eu”, do self (e de sua filha direta, a

selfie). Na internet não há mazelas que eu não queira que haja. Se posto fotos

de doença, é porque quero. Se não quiser ver doença, não posto, não vejo. Se

quiser mostrar alguma imperfeição, mostro-a sob o ângulo que eu quero, no

tempo em que eu desejo. Os recalques do cotidiano somem diante da

fragmentação e da reconfiguração do “eu real” no “eu virtual”. Um profundo

silêncio instala-se. Despercebido, o silêncio traz solidão. E o isolamento pode

esmagar, afogar. Como numa relação de vício, o que me mata também é

minha única fonte de prazer.

Se os diagnósticos de que a internet como potencial pode retirar-nos da

solidão ou de que, como ato, nos isola são igualmente reais, resta ainda uma

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