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O Dilema do Porco Espinho - Leandro Karnal

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A amizade tinha que ser uma epifania lenta. Uma conversa genuína com um

amigo era uma dissecação anatômica da alma.

De concepções antigas e modernas, uma lógica da amizade persistiu: o

tempo. Não se criam amigos de um dia para o outro, pensávamos. Amigos

demandam história, repertório de casos, vivências em conjunto. Amigos

precisam viajar juntos. Assim, os afetos integram a vida das respectivas

famílias. Amigos acompanham nossos sucessos e fracassos amorosos,

choram e riem com nossa biografia. Amigos precisam de cultivo constante.

Todo amigo é, dialeticamente, um frágil bonsai e frondoso carvalho. Nesse

sentido, pensávamos, quem adicionei ontem na minha rede social é um

fantasma, um fóton, jamais um amigo. Lembremos o conselho sábio dado por

um tolo. Polônio prescreve ao filho Laertes, na peça Hamlet: “Os amigos que

tens por verdadeiros, agarra-os a tu’alma em fios de aço; mas não procures

distração ou festa com qualquer camarada sem critério”.

As rupturas geracionais são muito fortes no século XXI. Não se trata mais

de velhas e novas gerações somente, todavia de mudanças verificáveis no

espaço de poucos anos entre um salto tecnológico e outro. Com eles e por

meio deles, podemos ver que existe uma maneira distinta de perceber afetos.

Sociabilidade, corporalidade e diálogos se mostram distintos entre alguém X

ou Alpha. Não se trata mais de domínio de aparelhos, apenas, mas de

maneiras de ser no mundo radicalmente distintas.

Dois jovens de 16 anos se encontram. Eles conversam, ainda que, na maior

parte do tempo, fiquem digitando, enviando fotos ou atualizando seus perfis.

Para eles, não existe uma deficiência no encontro. O amigo à sua frente não

estaria sendo desprezado ou inferiorizado diante da concorrência da tela. De

alguma forma que me escapa, realizam um encontro, satisfatório para ambos.

Prefere olho no olho aos emojis? Há uma chance de você ser mais velha ou

mais velho.

A diferença central não está contida em virtual ou real, porém na

percepção do que venha a ser real. Sempre é preciso insistir: a ideia de

realidade varia de geração a geração. Todas as gerações sempre consideraram

que a sua atitude era a mais sensata. Descartes advertiu que bom senso seria

a virtude mais bem distribuída do mundo, pois todos acham sua dose pessoal

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