21.11.2021 Views

O Dilema do Porco Espinho - Leandro Karnal

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

Zygmunt Bauman descreveu um jovem que havia adicionado centenas de

amigos em um único dia em sua rede social. O anglo-polonês reflete, com

mais de 80 anos, que fizera poucos amigos ao longo de toda a vida.

Inteligente, o sociólogo constata que estamos falando de dois conceitos

distintos de amizade. A postura é ótima, pois não classifica como inferior a

outra concepção. Seria a percepção de valor da amizade como antídoto ideal

contra a solidão algo que depende apenas de geração?

Em primeiro lugar, lembremos, quase tudo é histórico. O que chamamos

de amizade certamente o é. Muito rapidamente, correndo o risco de

simplificar demais, podemos dizer que os gregos acreditavam na amizade

como um amor entre iguais, entre homens bons, valorosos. Cícero, por sua

vez, escreveu que a essência da amizade estava na concordância perfeita de

desejos, gostos e opiniões. “A amizade nada mais é, com efeito, que um

entendimento perfeito em todas as coisas, divinas e humanas, acompanhado

de generosidade e afeição mútuas”, acreditava. Nessa lógica antiga, ouvimos

apenas as vozes de uma elite letrada. Sabe-se lá o que um grego ou romano,

numa taverna, embriagado e jogando dados, diria. As opiniões que nos

chegaram desse longínquo passado mostram uma relação entre iguais, um

jogo de espelhos. Amo o amigo porque ele é igual, tão virtuoso quanto eu. A

amizade estava na base da sociedade: somente a amizade traria a

benevolência e a generosidade. Sem elas, diria o mesmo orador romano,

“nenhuma família, nenhuma cidade poderá subsistir e a própria agricultura

não poderá sobreviver”.

Em pleno século XVI, o conceito se modificara. Amizades surgiam entre

pessoas que se admiravam, sem que tivessem que ser uma o espelho da outra.

A estreita relação entre os filósofos Montaigne e Étienne de La Boétie resulta

numa das mais belas frases já escritas sobre esse tipo de afeto. Nos seus

ensaios, o nobre tenta explicar por que amava La Boétie. Só consegue dizer

que a causa central era “porque era ele, porque era eu”. O autor dos Ensaios

reconhece que, na especificidade absoluta do outro, estava a chave da fusão

elevada a que chamava amizade. Tal afirmação de Montaigne mostra que a

amizade encontra o mistério da afinidade afetiva porque, diante do amigo,

torno-me, de fato, quem sou. Não existe uma racionalidade que abarque isso.

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!