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O Dilema do Porco Espinho - Leandro Karnal

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Por que falar tanto da mudança em um livro de solidão? O incômodo de

estar sozinho ou ser infeliz é muito mais gritante a partir dessa mudança.

Conformar-se com vida passageira e de poucos prazeres, sem alegrias

matrimoniais ou sem retribuição de felicidade no trabalho, hoje há uma

demanda imperativa para a completa realização. Quero dizer que no século

XXI não ser feliz, estar mal ou não atingir a plena potência de realização da

sua vida é, para a maioria, inadmissível.

Vivemos a época de ouro da felicidade. O tema é o que mais vende em

livros e vídeos. As cenas de contentamento são obrigatórias nas redes sociais.

Os dentes em amplo sorriso, escassos na arte clássica, dominam as fotos

atuais. Todos sorrimos por bastante tempo para que a foto fique boa. Sem

sorriso, não existe a chance de imagem. Aparecer em redes é exibir felicidade.

Como deveríamos ser profundamente felizes, todo desvio do caminho

áureo da realização é um defeito a ser corrigido. Estar sozinho é impensável.

Há manuais para buscar o par ideal. Existem testes e questionários em quase

todas as revistas. A riqueza, o amor, a realização profissional e a própria

estética pessoal passam a ser vistas como parte de uma meta possível e

desejável. Todos podem alcançar se forem focados e resilientes. Ninguém

precisa ficar sozinho.

Há algo de positivo na mudança. Sem normas rígidas e insuperáveis sobre

papeis sociais, muitas mulheres escapam da ideia do casamento e da

maternidade como obrigatórios e de acordo com uma “natureza feminina”.

Mulheres do século XXI podem morar sozinhas, trabalhar, construir seu

projeto de vida sem se utilizar de roteiros canônicos. Porém, mesmo a mulher

livre e empoderada deve dizer constantemente que está feliz mesmo não

sendo mãe, assim como as mães devem estar muito felizes com a

maternidade. O novo imperativo não é case, tenha filhos e siga uma carreira

estável. O imperativo absoluto é “seja feliz” e, se não for, ao menos pareça

nas fotos de redes sociais.

A solidão aparentemente pesa mais em um mundo onde a felicidade é

cláusula pétrea. A era da plena liberdade de escolha e intensa realização é a

era da farmacopeia contra a tristeza. Nunca sorrimos tanto nas redes e nunca

consumimos tantos remédios para dormir, para ser viril ou para acordar.

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