21.11.2021 Views

O Dilema do Porco Espinho - Leandro Karnal

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

bispos e agricultores irmanados no destino humano do fim. “Nulla in mundo

pax sincera”, coloca o Padre Vivaldi em famoso canto sacro. A paz no mundo

é sempre passageira, superficial e enganosa. Nunca podemos confiar em

nenhum idílio perene enquanto respirarmos. A felicidade, inclusive, era vista

com desconfiança, pois o caráter grave das verdades religiosas deveria deixar

o fiel em vigilância permanente porque, afinal, ninguém sabe o dia ou a hora

em que o fim dos tempos ou o seu próprio podem sobrevir (Mt 24,36). O

verdadeiro homem de fé era circunspecto. Poucos traziam a tradição do

“jogral de Deus”, Francisco de Assis, que insistia na alegria do Evangelho. A

alegria da boa-nova (o Evangelho) foi sendo lida, dominantemente, como o

temor da morte e do julgamento.

Tudo mudou. O mundo deixou de ser lido unicamente pela chave religiosa.

Uma atitude de confiança foi entrando em ascensão lenta desde o

Renascimento. Com momentos de expansão e de retração, o novo indivíduo

passou a cultivar mais e mais a ideia de que felicidade não era uma esperança

futura, porém uma realidade possível no presente.

O mundo contemporâneo, a partir do século XIX, foi trazendo o reforço da

ideia de opção pessoal, logo a escolha mais adequada à felicidade. Os

casamentos arranjados foram sendo substituídos pela necessidade de amor

genuíno. Surge a ideia, estranha por séculos, de que a junção de um homem

com uma mulher não era um contrato formal para gerar filhos legítimos e

herança, mas uma busca de felicidade familiar. Imagine como era exótico, no

seio da milenar monarquia inglesa, a ideia de que a rainha Vitória fosse

inteiramente apaixonada pelo marido, o príncipe Albert. Não era apenas uma

novidade na monarquia, e, sim, uma tendência crescente: o casamento e a

família poderiam trazer felicidade.

Um passo adiante: no mundo do Antigo Regime, a profissão era quase uma

herança familiar. Eu me tornava advogado porque meu pai assim o fora. A

escolha já estava feita.

Agora, imaginem o salto em direção à nossa época: eu escolho com quem

devo me casar e qual a função que desejo exercer. Aparentemente, assumo o

risco da felicidade a partir da minha vontade. Com o individualismo

crescente, tudo é válido desde que eu queira, desde que eu deseje como opção.

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!