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O Dilema do Porco Espinho - Leandro Karnal

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grande maioria das pessoas. Atuo e existo em grupo, sou lobo de uma

pequena ou gigantesca matilha. A solidão é o lugar privilegiado para

distinguir as vozes do mundo, incluindo as que me definiram e eu incorporei.

Acalmar a gritaria não é porque eu seja neurastênico ou nervoso, não porque

os outros são falsos e eu verdadeiro. Isolar-se nunca é para descobrir alguma

essência mágica no fundo da minha consciência, mas porque eu preciso me

ouvir e ouvir minha contradição. Precisa emergir o outro.

A tradição romântica adora insistir que a verdade estaria no coração

(metáfora dos afetos), e não no cérebro (metáfora da lógica racional). A

verdade, com artigo e definida como entidade única, não é cardíaca ou

cerebral. O ser humano é um torvelinho absoluto. Seus argumentos lógicos

são tão válidos como sua paixão. O coração apenas bombeia sangue, e a

subjetividade e a objetividade repousam em construções da consciência. Para

ouvir tais vozes, papéis, personagens e adereços cênicos, a solidão é

fundamental. Ordeno-me e me acalmo percebendo meu caos interior.

Não adiantará a solidão plenamente conectada, respondendo a mensagens

ou vendo fotos. No caso, afastar-se com internet é o fenômeno hikikomori,

que tratamos no começo da conclusão. Isolar-se aumentando o potencial de

uma couraça virtual é inútil. Isolar-se não é o deserto, necessariamente, nem

a cabana no lago Walden. Isolar-se é perceber coisas que o cotidiano e a

multidão não permitem. Isolar-se é ouvir a si e ao outro em si.

É compreensível a solidão para fugir do mundo cheio de incômodos. As

pessoas nem sempre são agradáveis, e nós, muitas vezes, não queremos ser

obrigados à gentileza eterna. Custa energia sorrir quando você quer berrar.

Fugir da multidão virou um produto de luxo. Áreas mais reservadas no avião

custam mais. Quanto mais gente, mais barato. Praias isoladas, comprar sua

ilha, estar sozinho em um carro e não no transporte coletivo, ter um

apartamento por andar, visitar lugares sem ninguém, e assim vai. Sair do

grande grupo é privilégio extremo. Não estou pensando no indivíduo abastado

na reclusão da primeira classe, especialmente se estiver lá postando fotos

para causar inveja ao mundo. Comprou o isolamento e o privilégio de menos

gente para conversar com a multidão virtual.

A primeira classe custa muito, e a experiência da cabana em Walden não é

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