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o excesso de barulho interno e externo. A solidão é distinta da afirmação de
que sou autônomo e independente. Ninguém é completamente autônomo e
independente. Somos gregários, tribais, sociais e vivemos em grupos maiores.
A percepção da diferença, da chamada alteridade, do contato desafiador com
as pessoas é uma chave essencial de crescimento. Apenas na solidão tornada
solitude eu consigo um período de mínimo distanciamento para redescobrir
quem eu sou e, acima de tudo, quem eu não sou. A advertência psicanalítica
com a qual comecei a conclusão deve estar sempre diante de nós: não se trata
de achar-se, mas de perder-se. “Eu é um outro”: a enigmática frase de
Arthur Rimbaud talvez explique sua existência errática de adolescente genial,
poeta voluntarioso e criativo e, de repente, traficante de armas do outro lado
do mundo. Quais seriam os eus e os outros do poeta? Talvez só ele tivesse a
resposta, mas foi preciso certo isolamento para pensar no tema.
Ao longo deste livro tratamos de isolamentos no deserto, como Moisés,
Jesus e Maomé. Os três precisaram de um tempo para buscar a inspiração
divina, o sentido final da sua missão, a tentação ou o outro que até então não
tinha se manifestado de fato.
Jesus precisou encarar os desafios demoníacos da pergunta do inimigo.
Para os religiosos, o Diabo é a personificação real do mal. Se um psicanalista
estivesse observando os três dilemas do Messias, poderia dizer que Jesus
estava ouvindo outros eus, outras possibilidades, desejos
contidos/negados/denegados. Quais desejos? Talvez saciar a fome, ter poder
ou demonstrar sua autoridade. Jesus estava descobrindo outras possibilidades
que estariam ao seu alcance. Sem ter descoberto tais desejos e ter dito não a
cada um deles com calma e consciência, emerge a missão de Jesus após
quarenta dias de solidão. Mateus encerra a narrativa (Mt 4,11) com anjos
servindo a Jesus. Anjos são representantes da paz e do bem, mensageiros do
divino e símbolos da estabilidade. Para ter anjos a servi-lo, ele teve de
recusar a tentação de se jogar do Templo de Jerusalém para ser amparado por
anjos. Em outras palavras, anjos vieram servi-lo quando ele passou pela
prova de instrumentalizar ao Outro angelical e a si mesmo como ordenador
do sagrado. Jesus foi servido pelos mensageiros do céu quando conseguiu
pensar nas suas contradições internas, teologicamente chamadas de