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O Dilema do Porco Espinho - Leandro Karnal

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o excesso de barulho interno e externo. A solidão é distinta da afirmação de

que sou autônomo e independente. Ninguém é completamente autônomo e

independente. Somos gregários, tribais, sociais e vivemos em grupos maiores.

A percepção da diferença, da chamada alteridade, do contato desafiador com

as pessoas é uma chave essencial de crescimento. Apenas na solidão tornada

solitude eu consigo um período de mínimo distanciamento para redescobrir

quem eu sou e, acima de tudo, quem eu não sou. A advertência psicanalítica

com a qual comecei a conclusão deve estar sempre diante de nós: não se trata

de achar-se, mas de perder-se. “Eu é um outro”: a enigmática frase de

Arthur Rimbaud talvez explique sua existência errática de adolescente genial,

poeta voluntarioso e criativo e, de repente, traficante de armas do outro lado

do mundo. Quais seriam os eus e os outros do poeta? Talvez só ele tivesse a

resposta, mas foi preciso certo isolamento para pensar no tema.

Ao longo deste livro tratamos de isolamentos no deserto, como Moisés,

Jesus e Maomé. Os três precisaram de um tempo para buscar a inspiração

divina, o sentido final da sua missão, a tentação ou o outro que até então não

tinha se manifestado de fato.

Jesus precisou encarar os desafios demoníacos da pergunta do inimigo.

Para os religiosos, o Diabo é a personificação real do mal. Se um psicanalista

estivesse observando os três dilemas do Messias, poderia dizer que Jesus

estava ouvindo outros eus, outras possibilidades, desejos

contidos/negados/denegados. Quais desejos? Talvez saciar a fome, ter poder

ou demonstrar sua autoridade. Jesus estava descobrindo outras possibilidades

que estariam ao seu alcance. Sem ter descoberto tais desejos e ter dito não a

cada um deles com calma e consciência, emerge a missão de Jesus após

quarenta dias de solidão. Mateus encerra a narrativa (Mt 4,11) com anjos

servindo a Jesus. Anjos são representantes da paz e do bem, mensageiros do

divino e símbolos da estabilidade. Para ter anjos a servi-lo, ele teve de

recusar a tentação de se jogar do Templo de Jerusalém para ser amparado por

anjos. Em outras palavras, anjos vieram servi-lo quando ele passou pela

prova de instrumentalizar ao Outro angelical e a si mesmo como ordenador

do sagrado. Jesus foi servido pelos mensageiros do céu quando conseguiu

pensar nas suas contradições internas, teologicamente chamadas de

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