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de que somos regidos pela noção de performance e pelo mundo do trabalho.
Como a morte e a velhice se tornaram um transtorno a ser controlado e
evitado, um problema à vida produtiva que define nossa identidade
contemporânea, o moribundo ou o velho são fontes de constrangimento.
Muitos nessas situações incorporam esse embaraço, o que explicaria seu
isolamento, suas celas solitárias. Cuidados com eles são, portanto,
terceirizados a hospitais, com suas normas e regras terríveis do ponto de
vista da humanização. Eliane Brum, escrevendo sobre a morte de seu pai e
tendo acompanhado desde 2008 o sistema de cuidados e rotinas hospitalares,
deixa isso claro: “Somos seres que morrem, isso não podemos evitar. Somos
seres que perdem aqueles que amam, e isso também não podemos evitar. Mas
há algo aterrador que persiste, e isso podemos evitar. E, mais do que evitar,
combater. É preciso que os mortos por causas não violentas cessem de morrer
violentamente dentro dos hospitais. [...] Quando tudo acaba, não somos
apenas pessoas que precisam elaborar o luto de algo doloroso, mas natural. O
sistema médico-hospitalar faz de nós violentados. Não há apenas luto, mas
trauma”.
Em hospitais, morremos silenciosamente, do jeito que se espera hoje em
dia, higienicamente. Lá, citando Elias mais uma vez, “o cuidado com as
pessoas às vezes fica muito defasado em relação ao cuidado com seus
órgãos”.
A série trágica que Flávio de Carvalho pintou da mãe agonizando traz uma
dupla solidão. A morte da mãe e o testemunho do filho, uma com a dor da
doença e outro com a dor da perda. Nada pode ser acrescentado. Era o ano de
1947, o câncer de Ophélia não tinha nenhum remédio e o filho artista não
podia emitir opinião sensata, racional ou resignada. Tomou de papel e
registrou a cena. O resultado é uma comunicação solitária, pungente e que até
hoje abala cada fibra do meu coração quando vejo os originais. Ele usou
carvão sobre papel, o preto no branco, a realidade e a arte, a vida e a morte,
os opostos que tecem nossa mais arriscada aventura no momento do ponto
sem retorno, do ponto-final, do epílogo, do destino inevitável da
humanidade. Todo momento de solidão de dona Ophélia de Carvalho era
resumido naquele abril de 1947: as pequenas solidões tinham chegado à