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O Dilema do Porco Espinho - Leandro Karnal

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nós, salvo infortúnio da vida, chegaremos lá: como gostaríamos de ser

tratados e qual o limite da solidão que teremos?

Se nosso mundo de referências formativas se vai antes de nós, se olhar um

álbum de fotografias (ou velhas fotos digitalizadas num álbum eletrônico) é

como mirar um obituário, inevitavelmente a proximidade de minha morte se

torna concreta. A solidão do idoso assemelha-se, nesse caso, à solidão dos

moribundos. Esse é o título de um estudo de Norbert Elias sobre como

lidamos com a morte em nossos tempos (lembrando que o autor o escreveu

na década de 1980). O estudioso fala sobre a própria velhice, pois tinha 85

anos quando terminou o texto, e sobre a dificuldade dos mais jovens para

entender os mais velhos. Ele narra um episódio de quando, no início da

carreira estudantil, assistiu a uma palestra de um senhor que tinha

dificuldade de locomoção e se perguntou: “Por que ele arrasta os pés assim?

Por que não pode caminhar como um ser humano normal? Não pode evitar, é

muito velho”. O interessante é notar a associação de normal a juventude,

vigor físico e distância da morte e velhice a uma condição de decrepitude,

proximidade do fim, anormalidade. A própria tese do autor passa pelo

argumento de que, em outras épocas, a morte era algo mais cotidiana e

comezinha. Falava-se mais em morrer, a expectativa de vida era na casa de

40 anos. Yuval Harari, em Sapiens, traz dados nesse sentido, mostrando como

a morte estava associada muito mais à infância, a doenças, do que,

necessariamente, à velhice. Na Inglaterra do século XVII, 150 de cada mil

recém-nascidos morriam no primeiro ano de vida, e um terço das crianças

antes de completar 15 anos. Hoje em dia cinco em cada mil bebês ingleses

morrem no primeiro ano de vida, e sete em cada mil antes de completar 15

anos. Ele nos lembra do caso de uma família privilegiada da Idade Média, o

casal Eduardo I e Leonor, monarcas ingleses. Viveram o casamento mais

próspero e saudável que a Europa medieval podia proporcionar. Tiveram

dezesseis filhos entre 1255 e 1284, dos quais dez (62%) morreram durante a

infância; apenas seis conseguiram viver além dos 11 anos, e três (18%!)

viveram mais de 40. “Em média, Eduardo e Leonor perderam um filho a cada

três anos, dez filhos um após outro”, conclui Harari.

Muito mudou desde o século XIII. A medicina, o saneamento básico, a

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