21.11.2021 Views

O Dilema do Porco Espinho - Leandro Karnal

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

Monotonia e previsibilidade são sintomas dessa solidão a dois. Outro é o amor

apenas na distância. Amar intensamente a pessoa, desde que ela esteja longe.

Por mensagens de celular, demonstrações públicas de carinho, o amor é

impávido colosso. Tão logo a campainha toca, tudo o que era sólido se

desmancha no ar. O único desejo é que nossa cara-metade suma, pois

vivemos melhor sem ela. Se dedicação e entrega viram exigência e obrigação,

podemos estar acompanhados, mas nossa condição é de solidão profunda.

Abrir a boca para que, se isso gerará briga e (mais) rancor? Se estar sozinho

pode ser bom, a solidão a dois é terrível, uma prisão autoimposta. Paradoxos

da vida conjugal, vivemos numa solitária em companhia indesejável.

O casal nessa situação vive situações de solidão acompanhada em qualquer

lugar. Vá a um restaurante e certamente encontrará pessoas assim. Estão

sentadas uma diante da outra, mas não trocam palavras. Seguem sozinhas,

comendo, vendo o cardápio, a TV ou o celular. Sim, essa situação existe desde

que existem restaurantes e casais, mas se intensificou. Na verdade, os

relacionamentos muitas vezes já começam sem um estar com o outro

efetivamente. Estamos ao lado de, mas não com alguém. Isso é sintoma de

algo maior, da maneira como nos relacionamos com tudo e todos. Você

conhece alguém que não conversa? Alguém que, no lugar de prestar atenção

no tema, refletir sobre o que lhe é dito, de se pôr no lugar do outro, palestra

sobre si próprio o tempo todo. Largos monólogos diante de outras pessoas.

Há gente que tem amigos sobre os quais nada conhece, colegas de trabalho

com quem nunca trocou palavras (porque não ouve, apenas fala). Pessoas

assim são incapazes de se relacionar. Quando cansam de falar, enjoam da

pessoa à frente. O casamento ou o namoro é apenas mais um capítulo na

mesma forma ensimesmada de ver o mundo, um reflexo da solidão em tudo o

que se faz. Se alguém assim encontra – por ironia – sua efetiva cara-metade,

outra pessoa idêntica na incapacidade de se relacionar, uma solidão soma-se

a outra. Temos dois solitários que não se ajudam. Aliás, se falamos em filhos:

há quem os tenha apenas para assegurar-se de que não estará sozinho, de

que assegura plateia para si... ledo engano. “Tanto eu quanto ela conhecemos

a arte da reticência”, resume de forma precisa a personagem Aldo, quando

fala de seu relacionamento com a esposa, Vanda, no romance Laços, de

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!