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uma situação assim chega? Lidar com a autonomia do outro pode ser difícil ao
ciumento, mas enclausurar alguém numa masmorra interna de medos e
receios é certamente pior.
Queimar os navios: a metáfora de Chico remete à tradição da Eneida e do
conquistador Cortés. Quando se queima o navio, impede-se o retorno. Só
existe o caminho pela frente. Se fosse apenas um gesto de coragem, de
determinação, todo relacionamento seria um sucesso reservado a ousados.
Gente corajosa também enfrenta a separação, bem como quem jamais
queimou nada e sempre manteve intactos os navios da sua individualidade.
O caminho para a mesma solitária pode ser outro. Calçado de insultos ou
negligências, violência e agressividade, uma relação pode se estender por
anos sem que as pessoas trilhem a mesma senda. No extremo oposto, o
excesso de si, negando o outro e sua vontade, ainda que se faça isso sorrindo
e entregando rosas, leva ao mesmo destino.
Um amigo me disse certa vez uma frase que escutara de seu psicólogo
quando lhe contou que sua esposa estava grávida: “Filhos, em um casal
saudável, são sinônimo de crise; em um casal que não vai bem, significam
fim”. A sentença é dura, mas certeira. Uma relação planejada a dois ganha
outra ponta, e um triângulo amoroso se instaura. Outros filhos podem
aparecer, e a relação ganha mais pontas. Um filho torna-se o favorito da mãe,
outro, o do pai. Temos dois casais, e nenhum é o original. Os filhos crescem,
saem de casa, instala-se a tão sabida síndrome do ninho vazio. Quantas vezes
alguém se descobre olhando para um estranho com quem partilhou o leito
por décadas? A solidão esteve ao lado por tantos anos...
Descrevi o roteiro de um casal que se amava e planejava filhos. Estes
podem aparecer antes dos planos, antes do amor ou como forma de suprir um
vazio que já estava lá antes mesmo da síndrome do ninho vazio. E a ruína de
um relacionamento pode ser a ruína de si. Condenamo-nos ao exílio, ao
degredo em terras conhecidas e mais próximas do que gostaríamos.
No começo de uma relação, dizer que a alma gêmea não precisa falar nada
porque te conhece com um simples olhar pode parecer virtude. Com o tempo,
as não palavras podem virar silêncios que duram dias. O enfado previsível do
outro. Sei o que ele vai dizer, sei o que ela fará antes mesmo que diga ou faça.