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O Dilema do Porco Espinho - Leandro Karnal

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uma situação assim chega? Lidar com a autonomia do outro pode ser difícil ao

ciumento, mas enclausurar alguém numa masmorra interna de medos e

receios é certamente pior.

Queimar os navios: a metáfora de Chico remete à tradição da Eneida e do

conquistador Cortés. Quando se queima o navio, impede-se o retorno. Só

existe o caminho pela frente. Se fosse apenas um gesto de coragem, de

determinação, todo relacionamento seria um sucesso reservado a ousados.

Gente corajosa também enfrenta a separação, bem como quem jamais

queimou nada e sempre manteve intactos os navios da sua individualidade.

O caminho para a mesma solitária pode ser outro. Calçado de insultos ou

negligências, violência e agressividade, uma relação pode se estender por

anos sem que as pessoas trilhem a mesma senda. No extremo oposto, o

excesso de si, negando o outro e sua vontade, ainda que se faça isso sorrindo

e entregando rosas, leva ao mesmo destino.

Um amigo me disse certa vez uma frase que escutara de seu psicólogo

quando lhe contou que sua esposa estava grávida: “Filhos, em um casal

saudável, são sinônimo de crise; em um casal que não vai bem, significam

fim”. A sentença é dura, mas certeira. Uma relação planejada a dois ganha

outra ponta, e um triângulo amoroso se instaura. Outros filhos podem

aparecer, e a relação ganha mais pontas. Um filho torna-se o favorito da mãe,

outro, o do pai. Temos dois casais, e nenhum é o original. Os filhos crescem,

saem de casa, instala-se a tão sabida síndrome do ninho vazio. Quantas vezes

alguém se descobre olhando para um estranho com quem partilhou o leito

por décadas? A solidão esteve ao lado por tantos anos...

Descrevi o roteiro de um casal que se amava e planejava filhos. Estes

podem aparecer antes dos planos, antes do amor ou como forma de suprir um

vazio que já estava lá antes mesmo da síndrome do ninho vazio. E a ruína de

um relacionamento pode ser a ruína de si. Condenamo-nos ao exílio, ao

degredo em terras conhecidas e mais próximas do que gostaríamos.

No começo de uma relação, dizer que a alma gêmea não precisa falar nada

porque te conhece com um simples olhar pode parecer virtude. Com o tempo,

as não palavras podem virar silêncios que duram dias. O enfado previsível do

outro. Sei o que ele vai dizer, sei o que ela fará antes mesmo que diga ou faça.

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